O projeto Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais de Pernambuco, homenageado na edição 2006/2007 do Programa Petrobras Cultural, foi executado pelo Instituto Nômades em seis municípios do estado de Pernambuco onde há associações e núcleos de parteiras, durante os anos de 2008 a 2011.
Esperamos conduzir o público ao universo pesquisado por meio de imagens, de textos e de narrativas das entrevistadas. O conteúdo aqui apresentado é resultado de um processo de trocas e de construção coletiva de conhecimento entre a equipe do projeto e as parteiras participantes, mulheres especiais a quem agradecemos por compartilharem conosco suas vidas e a prática do ofício do partejar.
As parteiras tradicionais representam parte importante do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Detentoras de vasto saber empírico sobre parturição e plantas medicinais, conhecedoras de rituais de cura da tradição religiosa afro-indígena brasileira, líderes e referências em suas comunidades, essas mulheres são legítimas representantes da nossa rica diversidade cultural. O saber acumulado por elas, no entanto, encontra-se sob ameaça de desaparecimento, diante de um contexto que inclui a oralidade desse saber, o desinteresse das novas gerações pelo ofício e a pouca valorização em nossa sociedade.
Com este projeto inédito e pioneiro, o Instituto Nômades teve como principal objetivo realizar o inventário e registro dos saberes e práticas das parteiras tradicionais organizadas em associações e núcleos no estado de Pernambuco, utilizando a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), desenvolvida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), de forma a contribuir para a salvaguarda e difusão desse bem cultural do nosso patrimônio imaterial.
Para este inventário, foram localizadas e entrevistadas 165 parteiras residentes nas localidades abarcadas pelas quatro associações e pelos dois núcleos de parteiras existentes no Estado de Pernambuco: Associação das Parteiras Tradicionais do Município de Trindade (Sertão do Araripe), Associação das Parteiras de Caruaru Agreste (Agreste), Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes e Associação de Parteiras de Ipojuca (Região Metropolitana de Recife), Núcleo de Parteiras de Palmares (Zona da Mata) e Núcleo de Parteiras de Igarassu (Região Metropolitana de Recife). Além do registro etnográfico dos saberes e práticas dessas parteiras, o projeto também realizou o registro fotográfico das parteiras e suas práticas.
Localidades
CARUARU
Localizado na mesorregião do agreste de Pernambuco e na microrregião do Vale do Ipojuca, a aproximadamente 130 quilômetros do Recife, capital do estado, o município de Caruaru faz fronteira ao norte com os municípios de Toritama, Vertentes, Frei Miguelinho e Taquaritinga do Norte, a leste Bezerros e Riacho das Almas, ao sul com Altinho e Agrestina e a oeste com Brejo da Madre de Deus e São Caetano. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por ocasião da contagem populacional verificada no ano de 2007, Caruaru contava com uma população de 289.086 habitantes.
Por sediar a Associação das Parteiras de Caruaru Agreste, o município foi selecionado para compor o Inventário dos Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais de Pernambuco. No caso desta localidade, as entrevistas foram realizadas com parteiras residentes em Caruaru e em municípios vizinhos (Agrestina, Belo Jardim, Brejo da Madre de Deus, Riacho das Almas e São Caetano), uma vez que a Associação congrega parteiras de todo o agreste do estado. Em Caruaru, boa parte das parteiras reside na sede do município, mas também estão nos povoados e em sítios mais distantes, especialmente nos municípios vizinhos. Sobre as condições socioeconômicas, verifica-se que na região há oferta de trabalho e as parteiras trabalham ou são aposentadas. As áreas de atuação são ligadas à saúde e à agricultura, majoritariamente. Devido ao contexto econômico atual, encontramos algumas parteiras que estão envolvidas com o ciclo de produção da sulanca.
De acordo com dados das entrevistas para esse inventário, a Associação das Parteiras de Caruaru-Agreste foi fundada no início da década de 1990 a partir da iniciativa da ONG CAIS do Parto, cujos integrantes foram ao município de Caruaru e circunvizinhança em busca de parteiras, reunindo-as e auxiliando-as na formação de uma associação para se organizarem enquanto categoria, procurar articulação com os gestores públicos e o reconhecimento da profissão.
No início da execução do inventário, a Associação de Parteiras foi contatada e uma cópia do projeto de pesquisa foi solicitada e fornecida. Enquanto o projeto era analisado, as entrevistas foram sendo realizadas com parteiras da região a partir de dados constantes nos cadastros da Secretaria Estadual de Saúde, Secretaria Municipal de Saúde de Caruaru e do Grupo Curumim (porém todos os 15 nomes desse último cadastro eram de parteiras hospitalares). Após algumas conversas com a presidente da associação, nos foram passados nomes e contatos de algumas parteiras associadas.
Após o cruzamento dos dados, foi elaborada uma listagem inicial com um total de 38 parteiras. Destas, 01 havia falecido, 05 não foram localizadas (endereços errados, mudança de município), 02 estão nos cadastros, mas não são parteiras, e 01 estava se recuperando de uma cirurgia e não pode participar. Ao longo da pesquisa, outras 15 parteiras, indicadas por entrevistadas, foram incorporadas à lista. Destas indicadas posteriormente, 03 não foram entrevistadas, porque, apesar da indicação, não foi possível localizá-las. Então, partimos de um quantitativo final de 53 parteiras, das quais 41 foram localizadas e entrevistadas. De acordo com os critérios estabelecidos para esse inventário, 8 delas são consideradas parteiras hospitalares e 33 parteiras da tradição.
No caso desta localidade, as entrevistas foram realizadas com parteiras residentes em Caruaru e em municípios vizinhos (Agrestina, Belo Jardim, Brejo da Madre de Deus, Riacho das Almas e São Caetano), uma vez que a Associação congrega parteiras de todo o agreste do estado de Pernambuco. Em Caruaru, boa parte das parteiras reside na sede do município, mas também estão nos povoados e em sítios mais distantes, especialmente nos municípios vizinhos. Sobre as condições socioeconômicas, verifica-se que na região há oferta de trabalho e as parteiras trabalham ou são aposentadas. As áreas de atuação são ligadas à saúde e à agricultura, majoritariamente. Devido ao contexto econômico atual, encontramos algumas parteiras que estão envolvidas com o ciclo de produção da sulanca.
A prática do ofício das parteiras tradicionais entrevistadas consiste no acompanhamento do ciclo gravídico-puerperal, apresentando variações. Algumas parteiras não acompanham a gestação, apenas o parto e o pós-parto. Há casos em que apenas assistem o parto em si, ficando a responsabilidade pelos cuidados do pós-parto com os familiares da parturiente. A idade de iniciação das mulheres no partejar varia da adolescência à maturidade. Este momento é geralmente marcado pelo primeiro parto, cujos relatos são de situações emergenciais, acidentais ou em que é levada a assumir a tarefa de uma parteira, em geral mais velha, como nos casos em que é chamada para ficar com uma parturiente e a criança nasce enquanto o marido da parturiente vai em busca de uma parteira; em que atende a um chamado no lugar da mãe ou avó; ou em que corta o cordão umbilical do bebê por não haver uma especialista na ocasião do nascimento.
Algumas práticas tradicionais são identificadas com maior recorrência entre as parteiras dessa localidade: o uso de massagens na barriga pra “ajeitar o bebê”; utilização de rezas para facilitar a expulsão da placenta e o consumo de alguns alimentos como o café com manteiga e chás, especialmente de pimenta do reino, utilizados para “aumentar as dores” e ajudar no parto. As práticas (gestação, parto e pós-parto) vêm sendo transformadas a partir, principalmente, do contato com o modelo biomédico de atenção à saúde, a exemplo de mudanças na escolha do local de parto e nas orientações acerca das restrições alimentares durante a gestação e no pós-parto.
A maioria das entrevistadas participou dos cursos de capacitação para parteiras tradicionais. Verificou-se que desde a década de 1970 foram oferecidos treinamentos para estas mulheres, como atestam os certificados, mas na década de 1990 estes cursos passaram a ser oferecidos por organizações não-governamentais em parceria com os governos. As falas demonstram que além de um espaço para aquisição de conhecimentos técnicos e troca de experiências, os cursos são para as parteiras um momento de socialização e de lazer. Os discursos apontam para algumas mudanças estimuladas pelo conteúdo dos cursos, tais como utilização de luvas e incentivo ao acompanhamento pré-natal em postos de saúde.
Para grande parte das entrevistadas a iniciação no ofício se deu pelo acaso, destino divino, ou necessidade, aprendendo com a experiência e com a troca de conhecimento com mulheres mais velhas, parteiras mais experientes. Observa-se que muitas parteiras enveredaram para o trabalho em hospitais, seja na função de auxiliar de enfermagem ou como parteiras hospitalares, e, mesmo aposentadas, continuam atendendo partos domiciliares e exercendo tarefas ligadas à enfermagem (aplicar injeção, fazer curativos, etc). Algumas são bem atuantes na comunidade, atendendo partos com frequência, e são referências de saúde. Outras, mesmo sem estar “pegando menino” há algum tempo (algumas afirmam que estão sem partejar há 5 ou até 10 anos), exercem liderança na comunidade por meio de outras atividades: levando pessoas ao hospital, auxiliando as pessoas a tirar documentos, etc. Verifica-se também, uma transformação na forma de atuação da parteira, que passa a fazer o elo entre as mulheres e o serviço de saúde, muitas vezes acompanhando as parturientes até a maternidade.
IGARASSU
Localizado na região metropolitana do Recife, situado a cerca de 30 quilômetros de distância da capital de Pernambuco, o município de Igarassu apresenta uma área de 306 quilômetros quadrados, os quais integram suas áreas urbana e rural. Suas fronteiras territoriais apresentam a seguinte disposição: ao leste, encontra-se o Oceano Atlântico; a oeste, o município de Araçoiaba; ao sul, os municípios de Abreu e Lima e Cruz de Rebouças; e ao norte, o município de Itapissuma e o canal de Santa Cruz, braço d’água que separa a Ilha de Itamaracá do continente. Em contagem realizada no ano de 2007, a estimativa do total da população foi de 93.748 habitantes.
Em Igarassu não há associação de parteiras. A rede existente na localidade se formou porque as parteiras se conheceram por trabalharem em hospitais da região. É importante ressaltar que, além de Igarassu, a pesquisa também foi realizada nos municípios de Itapissuma e de Itamaracá, pois o campo nos mostrou que em oposição às fronteiras geográficas, as três cidades pareciam estar interligadas de um modo que formava um campo imaginário único, como se as parteiras compartilhassem de um mesmo universo simbólico. Muitas moravam em Itamaracá ou Itapissuma, mas trabalhavam em Igarassu ou moravam em Igarassu e trabalhavam em Itamaracá ou Itapissuma. A maioria se conhece, trabalha ou já trabalhou junta.
Quinze parteiras foram entrevistadas. Todas trabalhavam ou haviam trabalhado em hospitais da região, aspecto que molda e diferencia o perfil das parteiras em Igarassu: parteiras com experiência hospitalar.
É notório que a quantidade de partos assistidos em domicílio por essas parteiras nos dias atuais é pequena. Tal fato se deve, principalmente, ao acesso mais fácil aos hospitais da região, mas também à soma de outros fatores, como o aumento de ligaduras entre mulheres e o declínio da taxa de natalidade. Porém, ainda existem mulheres residentes em Igarassu, Itapissuma ou Itamaracá que escolhem ter seus filhos em casa, assistidas por parteiras como podemos constatar nas falas. Quanto à atuação no hospital, os partos realizados por estas parteiras estão diminuindo devido à proibição do órgão de classe, que veta a assistência ao parto por auxiliares ou técnicos de enfermagem ou parteiras “leigas”. Portanto, muitas entrevistadas trabalham atualmente em outras áreas do serviço hospitalar.
Em relação ao perfil socioeconômico das entrevistadas percebemos certo nivelamento. Todas residem em contexto urbano, tiveram acesso a estudos (a maioria possui o curso de auxiliar ou técnico de enfermagem).
A prática das parteiras entrevistadas divide-se equilibradamente entre a atenção a todo o período gravídico-puerperal e, devido à realidade vivenciada, a assistência apenas ao parto e ao pós-parto. Em seu ofício, são empregadas práticas tradicionais (chás, óleos e rezas) – seja para assegurar uma boa gestação e garantir um bom parto, seja para acelerar o trabalho de parto – associadas a práticas apreendidas no meio hospitalar. Muitas parteiras afirmam que o trabalho realizado em domicílio se diferencia porque nesse contexto elas têm autonomia para esperar o tempo do nascimento e liberdade para se valerem do saber popular. Para elas, o diferencial da parteira, em contraponto ao médico, está em saber admirar a beleza do parto, ter paciência, ter amor, passar confiança e estar disposta a atender uma mulher quando ela mais precisa: “Ser parteira é ajudar o próximo, principalmente quando ele mais precisa. É o amor que você tem, o carinho que você tem e… Pra mim ser parteira é importante porque você está trazendo vidas para o mundo”.
IPOJUCA
Localizado na mesorregião metropolitana do Recife e na microrregião de Suape, a aproximadamente 50,2 km do Recife, capital do estado, o município de Ipojuca faz fronteira ao norte com o Cabo de Santo Agostinho, ao sul com Sirinhaém, a leste com o Oceano Atlântico e a oeste com o município de Escada. Constituído três distritos – Ipojuca-sede, Nossa Senhora do Ó e Camela – e 74 engenhos que compreende a zona rural da localidade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por ocasião da contagem populacional verificada no ano de 2007, Ipojuca contava com uma população de 66.384 habitantes.
A Associação de Parteiras de Ipojuca reúne-se através de uma associação de mulheres trabalhadoras rurais, com sede nas dependências do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca. A responsável por organizar as parteiras e convidá-las para reuniões ou encontros externos não é parteira, mas uma liderança local integrante do sindicato. A associação não é legalmente formalizada e encontra-se praticamente desativada.
A Associação de Parteiras de Ipojuca reúne-se através de uma associação de mulheres trabalhadoras rurais, com sede nas dependências do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca. A responsável por organizar as parteiras e convidá-las para reuniões ou encontros externos não é parteira, mas uma liderança local integrante do sindicato. A associação não é legalmente formalizada e encontra-se praticamente desativada.
Das 28 parteiras que compunham os cadastros disponibilizados pela Associação, Grupo Curumim, secretarias estadual e municipal de saúde, algumas haviam falecido e outras passaram a residir em outros municípios. Portanto, foram localizadas e entrevistadas um total de 22 parteiras, que de acordo com os critérios estabelecidos para esse inventário, duas delas são parteiras hospitalares, e as outras vinte, parteiras da tradição.
Algumas parteiras residem na sede municipal da localidade, outras nos distritos que integram o município de Ipojuca. A grande maioria das parteiras da tradição, moram nos engenhos, na zona rural, lugares distantes e de difícil acesso cujas estradas, de barro, em época de chuva, ficam quase sem condições de serem utilizadas. A lama chega ao joelho e o acesso a alguns engenhos fica praticamente inviável. Esse é o cenário que integra a vida cotidiana dos moradores da zona rural no período chuvoso.
Era nesses lugares de difícil acesso que as parteiras exerciam a prática do ofício com maior freqüência. Atualmente, já não pegam tantos meninos como nos tempos de antigamente. Algumas delas, o parto assistido mais recentemente foi há cerca de dez anos. A diminuição da atuação das parteiras junto às mulheres da região é resultado de uma soma de fatores, dentre eles a cultura tecnocrata assimilada pelas mulheres que tem o hospital como o local “seguro” para o parto, a facilidade de acesso aos estabelecimentos de saúde e as políticas públicas de saúde implementadas no município. “Agora tem maternidade. Muitas mulheres novas agora não querem ter menino na mão da gente, porque têm medo ou têm vergonha, né? Querem a maternidade. Aí a vida da gente para pegar menino tá muito pouca. Só pega mais, vou lhe explicar, aquele engenho longe que tem água, lama, que é difícil o carro entrar porque só de avião. Essas parteiras que estão fazendo mais. Mas, essas parteiras que estão aqui em cima da comunidade, o carro do sindicato entra e leva. E a gente só faz quando está nascendo”. Essa realidade também vem sendo vivenciada no cotidiano do hospital, devido ao fato de ter sido proibida a presença das parteiras no atendimento ao parto hospitalar. Exemplo ilustrativo é o de D. Sandra, parteira hospitalar, cujo parto mais recente que atendeu foi em 2007, “às vezes eu até sonho fazendo parto. Acordo cansada…”.
A prática do ofício das parteiras tradicionais entrevistadas consiste, em sua maioria, no acompanhamento de três etapas: gestação, parto e pós-parto. Uma das práticas tradicionais identificadas com maior recorrência entre as parteiras dessa localidade é o café quente com manteiga e/ou margarina, oferecido a parturiente para aumentar as dores das contrações e acelerar o trabalho de parto. Elas também costumam usar uma diversidade de chás como, por exemplo, o chá de pimenta-do-reino, manjericão e erva-cidreira. A utilização da oração de Santa Margarida é outra prática bastante recorrente: “Minha Santa Margarida, num tô prenha nem parida, tira essa carne podre de dentro da minha barriga”.
No que diz respeito aos cursos de capacitação para parteiras tradicionais, a maioria das entrevistadas participaram em algum momento e muitas afirmam que passaram a adotar algumas mudanças em suas práticas depois das capacitações como, por exemplo, orientar sobre a importância da gestante fazer o pré-natal, estimular a amamentação nas primeiras horas de vida do bebê e só dar banho no dia seguinte após o nascimento.
JABOATÃO DOS GUARARAPES
Localizado na região metropolitana do Recife, o município de Jaboatão dos Guararapes encontra-se a cerca de 18 quilômetros de distância do centro da cidade do Recife, capital de Pernambuco. Suas fronteiras territoriais apresentam a seguinte configuração: ao leste encontra-se o Oceano Atlântico; a oeste o município de Moreno; ao sul o município do Cabo de Santo Agostinho; e ao norte os municípios de Recife e São Lourenço da Mata. Sua área territorial tem uma abrangência de 256 Km2 e boa parte do seu território encontra-se densamente povoado.
De acordo com contagem populacional realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2007 o município apresentava uma população estimada de 665.387 habitantes, número que consolidava sua posição como o segundo maior município de Pernambuco em número de habitantes, sendo ultrapassado apenas pela capital do estado.
Embaralham-se em seu território áreas predominantemente urbanas, com todos os seus problemas característicos, e áreas predominantemente rurais, formadas por engenhos. A Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes congrega parteiras urbanas e rurais, além de parteiras de municípios vizinhos, como Recife e Camaragibe.
Durante a fase de coleta de dados do inventário, o processo de localização e contato com as parteiras em Jaboatão dos Guararapes foi árduo, uma vez que havia duas listas distintas de parteiras: uma da ONG Grupo Curumim, outra da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Do cruzamento dessas listas, obtivemos um total de 73 parteiras. Esse montante ainda não incluía o cadastro da Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes. Foi bastante difícil ter acesso a esse cadastro, uma vez que não havia na Associação um arquivo completo. Havia pelo menos duas listas, sendo que uma delas apresentava por vezes apenas o nome da parteira, sem dados adicionais como telefone e endereço. Confrontando as listas e inseridas todas as parteiras do cadastro da Associação, o número de parteiras da localidade se elevou para 146 mulheres.
As entrevistas começaram a partir desse levantamento. Foram contatadas as parteiras que tinham dados completos e as entrevistas começaram, sempre buscando levantar os dados das parteiras que não tinham endereço e telefone no cadastro. Durante o trabalho de campo, surgiram seis novas parteiras, citadas por outras ou pela comunidade da localidade, as quais foram entrevistadas, elevando o quantitativo de parteiras na localidade 152. Desse total, porém, identificamos 17 parteiras que já haviam falecido. O número total de parteiras da localidade fixou-se, então, em 135, sendo que destas 39 foram localizadas e entrevistadas.
Das 96 mulheres restantes no cadastro, identificamos 11 que não eram parteiras – eram doulas, filhas de parteira, tinham outras funções na Associação, ou tinham ajudado em algum parto pontual, mas não se consideravam parteiras. Restaram então 88 parteiras que não foram localizadas: ou estavam viajando, ou não tinham no cadastro endereço/telefone, ou o endereço fornecido era inexistente ou incorreto. Tal fato dificultou bastante o trabalho de campo, com idas infrutíferas e procuras por endereços inexistentes e/ou incorretos.
Nesta localidade há um número razoável de parteiras ainda atuantes na assistência a partos. Contudo, é notória a diminuição desses atendimentos. Isso se deve a motivos variados. Algumas apontam o surgimento dos postos de saúde da família (PSFs) como causa, já que eles recomendam que as parteiras encaminhem as grávidas aos serviços de saúde e hospitais, por considerar o parto domiciliar perigoso. Essa, segundo algumas parteiras, também foi uma recomendação comum em alguns dos cursos de capacitação para parteiras realizados pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco – o parto domiciliar passa a ser algo emergencial, e não uma escolha da mulher. Muitas parteiras também citam que a escolha das mulheres hoje em dia é pelo parto hospitalar, pela imagem de segurança que a maternidade representa para a sociedade urbana e contemporânea.
Dentro desse contexto, observa-se que as que ainda atendem em domicílio o fazem por: escolha da mulher, como no caso da parteira Maria dos Prazeres de Souza, presidente da Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão (isso porque cresceu nos últimos anos o número de mulheres informadas que buscam protagonizar seu próprio parto e procuram na figura da parteira a referência para um parto domiciliar seguro e afetuoso); confiança no trabalho da parteira – muitas mulheres se sentem mais seguras acompanhadas por uma pessoa de referência em sua comunidade, além de acharem o atendimento hospitalar frio e amedrontador; difícil acesso aos hospitais – esse é o caso principalmente das parteiras que exercem suas atividades em engenhos de difícil acesso da área rural de Jaboatão dos Guararapes, como nos casos das parteiras Tereza Maria Diniz (Queleu) e Djanira Gomes da Silva; falta de acesso a transporte – nas áreas urbanas e de periferia, às vezes é difícil conseguir um carro para levar a parturiente a um serviço de saúde, especialmente levando-se em consideração o poder aquisitivo das famílias (muitas vezes não há carro disponível dentro da comunidade, e mesmo que houvesse dinheiro para pagar, os taxistas frequentemente recusam-se a entrar na comunidade).
Entre as parteiras entrevistadas no campo de Jaboatão, uma grande parte possui experiência hospitalar, fato que diferencia e específica este campo. Além disso, mesmo as parteiras sem experiência hospitalar apresentam algumas práticas hospitalares – muitas tiveram acesso a esses conhecimentos, seja nos próprios partos, seja acompanhando parentes e amigas, seja porque atuam como Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs).
A grande maioria das parteiras entrevistadas já participou de algum curso de capacitação para parteiras tradicionais, sendo uma das exceções o caso da parteira Maria Severina da Silva (Lica), cujo perfil é de parteira da família, que atendia apenas aos parentes e às pessoas mais próximas.
Da mesma forma, a maioria das parteiras entrevistadas possui ou possuiu algum vínculo com a Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes, o que demonstra, talvez, a influência da Associação na prática das parteiras da região.
As mudanças na prática do partejar mais citadas são o uso de luvas e outros materiais de higiene e segurança; a abordagem mais humanizada no trato com a mulher e o bebê e o uso dos materiais recebidos no kit da parteira fornecido nos cursos de capacitação.
Mudou muito. Muitas coisas. Mudou porque o material que eu trabalhava, não tinha material. Segundo lugar, algumas coisas que eu fazia de um jeito, como por exemplo, o que eu usava, o que eu usava remédio, óleo de amêndoas no umbigo do menino, depois da experiência dos cursos eu deixei de usar. Não usava luva, a tesoura era qualquer uma, cordão não existia, usava qualquer um. Tudo que eu uso hoje, tudo veio na bolsa. (Tereza Maria Diniz – Queleu -, Engenho Pedra Lavada, Jaboatão dos Guararapes).
Por outro lado, há um número significativo de parteiras que afirma não haver mudado nada em sua prática:
Sempre eu faço do jeito que eu comecei. Eu não quero mudar não, porque eu tenho medo de mudar e me complicar em alguma coisa. (Severina Bezerra da Silva – Naninha -, Sucupira, Jaboatão dos Guararapes).
PALMARES
A cidade de Palmares, localizada na mata sul do estado de Pernambuco, a 125 km da capital, tem 55.790 habitantes. Limita-se ao norte com Bonito, ao sul com Xexéu, a leste com Joaquim Nabuco e Água Preta e a oeste com Catende. Região de cultura de cana de açúcar, é composta por diversos engenhos, onde a maioria das parteiras residem. Não há um cadastro de parteiras na localidade de Palmares, mas percebe-se que algumas parteiras são figuras de liderança, mantendo contato com outras parteiras e demonstrando um desejo de fundar uma associação de parteiras.
Grande parte das parteiras que atua na região de Palmares está bastante isolada, residindo e atuando em engenhos distantes e de difícil acesso (em torno de 60% das parteiras entrevistadas moram em engenhos de difícil acesso). Alguns dos engenhos nos quais as parteiras atuam ficam quase que totalmente inacessíveis durante o período de chuvas, só podendo ser acessados de trator ou após uma longa caminhada por estradas nas quais a lama chega, em vários trechos, perto do joelho. São mulheres de baixa renda, que pariram muitos filhos (cerca de 84% das parteiras entrevistadas tiveram 5 ou mais filhos, a maioria assistidas por outras parteiras), que tiram o seu sustento de outras ocupações (principalmente de atividades rurais e da agricultura de subsistência) e que costumam atender a mulheres que residem em suas comunidades e nos arredores, comungando da mesma realidade socioeconômica que elas. Costumam encarar o ofício de parteira como uma missão, um dom que lhes foi dado por Deus e que têm a obrigação de usar a serviço da comunidade: “Eu já tive muita vontade de desistir, mas eu tenho dó de estar dormindo na minha casa, chegar na minha porta me chamando, e aquela criatura sofrendo tanto, e ela estar lá precisando de ajuda, e eu não ir. Não faço isso, porque tem a ajuda de Jesus e a nossa ajuda que dá aquela força, coragem” (Maria José de Oliveira – D. Geruza – , Engenho Jaqueira).
Em torno de 85% das parteiras entrevistadas já tinham ao menos um filho antes de iniciar sua prática, e o primeiro parto atendido se deu em uma “emergência”, ou seja, em uma situação na qual o nascimento estava iminente e não dava tempo de chamar uma parteira ou remover a parturiente para outro local. Grande parte relata haver utilizado procedimentos no primeiro parto atendido dos quais lembravam a partir de partos vivenciados por elas mesmas (lembravam os procedimentos utilizados pelas parteiras que as atenderam), ou por terem ouvido conversas de outras mulheres sobre que procedimentos adotar, em especial nos casos das parteiras que têm outras parteiras na família (em torno de 38% das parteiras entrevistadas disseram ter mãe e/ou avó ou sogra parteira).
Percebemos também que, apesar de muitas das parteiras entrevistadas terem afirmado que houve uma redução significativa na quantidade de partos que assistem, algumas parteiras da região ainda são bastante atuantes, seja por residirem em áreas de mais difícil acesso, seja pela procura por seus serviços pela comunidade, como é o caso de Edite Maria da Silva (D. Edite), do Engenho Couceiro, que ganhou fama depois de ter aparecido em um programa de televisão de grande audiência nacional e passou a ser procurada inclusive por mulheres residentes em outros engenhos / comunidades. Os motivos por trás da diminuição da procura pelo parto domiciliar na região são variados e complexos, como é o caso das outras localidades incluídas neste inventário. As próprias parteiras apontam alguns desses motivos: utilização mais ampla de métodos anticoncepcionais com conseqüente diminuição da taxa de fecundidade das mulheres da região; ampliação da cobertura do SUS na região, que vem, cada vez mais, chegando em regiões onde antes não chegava, com conseqüente desestímulo ao parto domiciliar; maior confiança das mulheres nos médicos e hospitais do que nas parteiras. Uma das parteiras expõe sua insatisfação em relação ao desestímulo dos profissionais dos Postos de Saúde da Família (PSF) da região à prática da parteira: “Esse negócio de PSF e as enfermeiras que trabalham no posto, elas tão tirando o impacto de incentivar as parturientes a ter menino com parteira tradicional. (…) Elas não aceita que uma parteira tenha condição de fazer um parto.”
TRINDADE
É no Sertão do Araripe, região a oeste do estado de Pernambuco, que se localiza o município de Trindade, 665 km distante de Recife. É na região do polo gesseiro que se encontra a Associação das Parteiras Tradicionais de Trindade, cujo processo de organização se iniciou no ano de 1994. Das 25 parteiras entrevistadas, 02 delas são parteiras hospitalares, e as outras 23 restantes, parteiras da tradição. Apesar de não ser mais atuante como no passado, a Associação das Parteiras Tradicionais de Trindade mantém reuniões mensais, que vêm acontecendo nas dependências da Unidade Mista de Saúde do município. É a única associação de parteiras do estado em que as associadas chegaram a ser gratificadas pelos partos atendidos, através de um acordo estabelecido entre a Associação e a Prefeitura durante o primeiro mandato do prefeito Gerôncio Figueiredo (1993 a 1997).
Joaquim Araújo de Sá, o Juca, então Secretário de Saúde de Trindade, convocou as parteiras do município com o intuito de realizar o cadastramento das mesmas – “as parteiras já existiam, só que elas não se conheciam. Trabalhavam escondidas, isoladas e com medo. Ele pôs um aviso na rádio: quem fosse parteira tradicional comparecesse à Unidade Mista de Saúde de Trindade pra fazer o cadastramento. As parteiras foram aparecendo e dizendo: ‘eu sou parteira’. Depois houve um encontro de parteira no Caatinga [ONG], em Ouricuri, e a gente foi convidada. Já tinha 49 parteiras: 48 parteira mulher e 1 parteiro homem. Era o filho de Raimunda. No último dia, foi feita uma reunião pra que as parteiras já saísse com seus representantes: presidente, tesoureiro, primeiro secretário, segundo, e a gente já saiu com os seus coordenadores. Foi lá que a gente se conheceu” (D. Toinha Torres, 22/08/2008).
Nesse encontro, viabilizado pela Secretaria de Saúde do Governo do Estado e realizado em Ouricuri-PE, nas dependências da ONG Caatinga, as parteiras da região se conheceram, dentre elas, as que residiam no município de Trindade. A partir de então foi germinada a primeira semente de organização das parteiras – “aí veio Grupo Curumim dar um treinamento pra gente, aí apareceu mais parteiras. Só que esses representantes que foi tirando, escolhido, lá no Caatinga, elas num deram a continuidade. Ficou um, dois anos, essa associação parada, aguardando outros representantes. Quando o Curumim voltou procurou novos representantes. Aí fui eu presidente das parteiras; Francisca, a secretária; Alice, tesoureira. Aí a gente deu continuidade” (D. Toinha Torres, 22/08/2008).
Apesar de não ser mais atuante como no passado, a Associação das Parteiras Tradicionais de Trindade mantém reuniões mensais, que vêm acontecendo nas dependências da Unidade Mista de Saúde do município. É a única associação de parteiras do estado em que as associadas chegaram a ser remuneradas pelos partos atendidos, através de um acordo estabelecido entre a Associação e a Prefeitura, no primeiro mandato do prefeito Gerôncio Figueiredo (1993-1997). No seu segundo mandato (2005- 2008), o atual Prefeito Gerôncio Figueiredo, reeleito no pleito eleitoral de 2008, suspendeu a política de gratificação das parteiras. Porém, com a chegada do inventário à localidade, o prefeito retomou a idéia de voltar a gratificar as parteiras associadas pelos partos assistidos em domicílio ou mesmo nos casos da parturiente ser encaminhada pela parteira até a Unidade Mista de Saúde da localidade. Pleiteando a reeleição, tudo indica que a idéia não se concretizou na prática, ficando, apenas, no plano do discurso.
Na pesquisa para esse inventário, as representantes da Associação demonstraram capacidade de organização e mobilização, embora tenha ficado evidenciado que o cadastro das parteiras associadas se encontrava desatualizado. Para viabilizar sua atualização, foi feito um trabalho conjunto entre a coordenadora dessa localidade, a presidente da associação e a pesquisadora local. Trabalhamos com o cruzamento de três cadastros: o da própria associação e os outros dois que foram disponibilizados pelo Grupo Curumim e pela Secretaria de Saúde de Pernambuco. Após o cruzamento das informações, identificamos que algumas parteiras haviam falecido e várias outras mudaram de município. Chegamos ao quantitativo inicial de 35 parteiras, entretanto continuamos a nos deparar com dados incorretos e informações insuficientes que não permitiu viabilizar a localização de todas essas parteiras. Em alguns casos, embora seus nomes estivessem constando no cadastro, algumas mulheres não se consideram parteiras e outras não foram referenciadas na prática do ofício pelos moradores da comunidade.
Diante desse contexto, conseguimos localizar um total de 27 parteiras no município de Trindade, mas 02 delas não irão constar no quantitativo geral de parteiras dessa localidade, por motivos éticos e por limitações relacionadas à condições de saúde. No caso de uma delas, parteira bastante idosa, a família não autorizou a assinatura da carta de anuência. Quanto a Vó Amélia, parteira um tanto referenciada no Povoado da Bonita, zona rural de Trindade, há alguns anos ela foi acometida de um acidente vascular cerebral (AVC) e uma das seqüelas foi a perda da fala, por isso não foi possível entrevistá-la. Recorremos a seus familiares e usuárias, mas, infelizmente, eles não souberam descrever suas práticas no ofício do partejar. As informações foram insuficientes para, no mínimo, preencher o formulário do anexo 3. Portanto, de acordo com os critérios desse inventário, das 25 parteiras entrevistadas, 02 delas são parteiras hospitalares, e as outras 23 restantes, parteiras da tradição.
A grande maioria das parteiras da tradição reside nos sítios e povoados, zona rural da localidade. Alguns desses lugares são distantes e de difícil acesso que, em época de chuva, as estradas de barro ficam quase sem condições de serem utilizadas. Era nesses lugares que as parteiras exerciam a prática do ofício com maior freqüência em épocas atrás. Atualmente, já não pegam tantos meninos. Algumas delas pegaram o último menino há cerca de 8 anos.
A diminuição do atendimento ao parto domiciliar pelas parteiras se encontra relacionada a um conjunto de fatores, dentre eles, às políticas públicas de saúde implementadas no município que, com a implantação dos PSF’s e a ampliação do serviço de atendimento médico na localidade, as parteiras passaram a ser orientadas a conduzir as parturientes ao hospital e as mulheres estimuladas a não optarem pelo parto domiciliar, de modo a reduzir significativamente o quantitativo de partos assistidos por parteiras em domicilio.
As histórias de iniciação na prática do ofício das parteiras dessa localidade são um tanto parecidas. Boa parte delas são netas ou filhas de parteiras e aprenderam a partejar acompanhando suas mães de avós na assistência ao parto. Outras atenderam o primeiro parto domiciliar em situações de “emergência” e a partir de então passaram a serem referenciadas na comunidade como mulheres que pegam menino. Há também aquelas que mesmo sem exercer a função de parteira, vivenciaram pela primeira vez o ofício do partejar no ambiente hospitalar e nesse contexto se tornaram parteiras, atendendo partos tanto hospitalares quanto domiciliares, casos em que a ciência da tradição dialoga com a convivência biomédica. Em suma, na maioria dos casos é recorrente a transmissão familiar, o saber repassado através da oralidade e a experiência do partejar adquirida na pedagogia da vida.
Um dos exemplos que ilustra a iniciação dessas mulheres que pegam menino é a história de vida de Dona Alice e sua trajetória no ofício do partejar. Neta da parteira Francisca Rodrigues, sua avó materna – “eu mesmo fui pegada por parteira, a parteira da minha mãe foi ela”-, foi aos 20 anos de idade que D. Alice se iniciou no oficio do partejar – “eu tive um sonho de fazer um parto. Foi quando eu fiquei mais uma comadre minha, enquanto ia chamar a parteira, aí veio o menino. Aí eu peguei e disse: ‘e agora? Como é que eu faço?’. Aí a comadre disse: ‘é assim’”, orientando-a com os procedimentos após o nascimento do bebê. O primeiro parto que atendeu foi no ano de 1979, e desde então, “começaram a me procurar, o povo começou a gostar…”. Casada, mãe de três filhos, dois biológicos e um adotivo, o parto de um de seus filhos foi assistido em domicílio pela enfermeira-parteira Elza, e após ter vivenciado sua primeira experiência de “pegar menino”, quando atendeu o parto de sua comadre, foi buscar orientações com Elza. A partir de 1988, D. Alice e sua família passam a residir no município de Trindade-PE, “vim morar no Saco Verde, era tudo conhecido. (…) Maria Pureza mesmo, quando chegava, eu já tinha feito o parto. Ela chegava e dizia: eu sabia que comadre Alice num tava só. Olhava e tava tudo ok. Daí por diante comecei, as pessoas aqui da região, do sítio Saco Verde, da Inveja, os partos tudinho era em domicílio. 3/4 dos menino aqui da região sou eu que faço”. A partir de 1994, D. Alice começou a freqüentar vários cursos de capacitações para parteiras, dentre outros na área da saúde, e no ano de 1996, ela se tornou Agente Comunitária de Saúde (ACS) do povoado do Saco Verde, zona rural onde atua e reside (entrevista realizada com D. Alice em 22/02/2008).
O Dom de pegar menino é também recorrente na narrativa das parteiras. Várias delas associam o ofício do partejar a um Dom Divino, uma ciência, um saber que a elas foi dado por Deus para auxiliar as mulheres e salvar vidas – “eu só tenho a ciência de pegar menino. A pessoa quando nasce com uma coisa, ela aprende, né! Ninguém me deu lição nenhuma. É da minha cabeça. É um dom que Deus me deu. É porque eu tenho. Deus me meu esse Dom. O que eu fiz, Deus me dá recompensa, me dando recompensa do reino do céu tá bom. Depende da sorte que Deus dá pra pessoa. Tem muitos que pode querer e num pode, porque a sorte não dá. É desse jeito. Porque tudo que Deus consente a gente faz. E tem deles que tem vontade de fazer e num faz. Gostava porque era meu ramo. Era a minha profissão. Uma pessoa vir atrás de mim, eu sabendo que sei, não ia negar, eu não negava. E tinha deles que vinha aqui atrás de mim, eu mandava ir pra maternidade, porque eu sabia que não dava pra mim. Quando ia pra maternidade era cesárea. Sei que quando eu mandava, eu já sabia o que era. Chegava lá [na maternidade] era uma cesárea. Sabia sem examinar, só olhar, sentia que não dava pra mim. A mulher que pega o filho e corta o umbigo dele, ela é a mãe, a legítima mãe primeira. É a mãe que pode garantir…” (D. Expedita Carlota, 22/08/2008).
É relevante mencionar que em algumas entrevistas na pesquisa no município Trindade foram citadas três categorias êmicas para as parteiras. Dona Francisca, parteira e Agente Comunitária de Saúde (ACS), explica que existe a parteira da hora, a parteira fina e a parteira da resistência. A parteira da hora é aquela que só atende o parto em situações de emergência, mas se houver a possibilidade de locomover a parturiente até o hospital ou mesmo passar a responsabilidade da assistência ao parto para outra parteira mais experiente, ela não atende ao parto. A parteira fina é considerada por seus pares uma parteira de ciência. Possui uma vasta experiência no ofício do partejar, não teme de imediato os desafios que um parto possa apresentar, por ser conhecedora da natureza e do corpo da mulher. Sinônimo de parteira mestra na prática do ofício, por vezes é entendido por outras parteiras como um Dom recebido do poder divino. A parteira da resistência é aquela que está disposta a aprender. Mesmo estando sujeita a passar por situações difíceis, ela não desiste de imediato da assistência ao parto. Procura aprimorar seus conhecimentos sobre parturição e sua prática no ofício do partejar por meio da experiência e dos saberes transmitidos oralmente pelas parteiras finas.
A prática do ofício das parteiras tradicionais entrevistadas consiste, em sua maioria, no acompanhamento de três etapas: gestação, parto e pós-parto. Uma das práticas tradicionais identificadas com maior recorrência entre as parteiras dessa localidade é o uso do chá de gergelim, oferecido a parturiente para aumentar as dores das contrações e acelerar o trabalho de parto – “peço gergelim, mando pisar e vou fazer o chá. Aí eu recebo aquele gergelim, faço um copo de chá, boto um pouco de azeite dentro, um pouquinho de açúcar e dou a ela pra beber. Aí a dor aumenta” (Dona Raimunda Parteira). Elas também costumam preparar chás de pimenta-do-reino e de cravo, ambos servem para aumentar as dores das contrações. Há uma diversidade de práticas da tradição usadas pelas parteiras na gestação, no parto e pós-parto como, por exemplo, chá de cebola branca e de alfazema usados durante gestação para auxiliar no desenvolvimento do bebê; banho de água morna durante o trabalho de parto; chá de imbiriba para aliviar as dores no pós-parto; a mistura de arruda com fumo, também usada em cima da barriga da mulher, caso ela sinta dores no pós-parto; banho de mistura de ervas (manjericão, mastruz e macela) para evitar inflamações no pós-parto; azeite de podóia ou de mamona, ambos usados no coto umbilical do bebê para auxiliar na cicatrização; “caldo da caridade”, um tanto mencionado pelas parteiras da localidade – “esse caldo é preparado só com um pouco de pimenta do reino, sal e alho. Depois põe um pouco de farinha de mandioca e oferece a parturiente” – que serve para dar força à parturiente e ajudar o bebê nascer.
Além da oração de Santa Margarida, rezada para auxiliar a expulsão da placenta, também identificamos outras rezas e orações que fazem parte da prática do ofício de algumas parteiras, a exemplo do “Rosário Apressado”, “Oração de Santa Rita”, e “Oração de Santo Enore”. Algumas parteiras mencionaram a existência das referidas orações e preferiram se resguardar e não revelar a reza para esse inventário. Porém, a parteira Dona Albertina nos ensina como ela reza o rosário apressado no evento do parto – “um terço tem 53 Ave Maria. Aqui são três. Aí forma 153 ave Maria e 153 Santa Maria, 15 Pai Nosso e 15 Glória ao Pai. Quando vai rezar, primeiro a gente reza o Creio em Deus Pai, aí começa daqui: ‘valei-me minha virgem da conceição. É chegada a ocasião [repete três vezes]’. Quando chega no Pai Nosso, diz: ‘oh Virgem da Conceição, senhora esclarecida, rainha dos céus, reino da vida e tudo será salvo. Senhora dai-me a vossa mão, que a minha alma está caída e meu corpo entristecido. Dai-me força Nossa Senhora, que chamasse por vós 153 vezes… Pai nosso, valei minha virgem da Conceição, é chegada à ocasião [três vezes]. Em nome do pai’. Aí começa: ‘oh Virgem da Conceição, senhora esclarecida, rainha do céu, reino da vida e da consolação. Senhora dai-me a vossa mão que a minha alma está caída e meu corpo entristecido. Dai-me força senhora do céu que por vós chamasse pra ser valido. Valei-me minha Virgem da Conceição é chegada a ocasião. Dai-me um toque senhor. Se eu enfrentarei este parto, se eu enfrentar vós me diga, e se eu num enfrentar…’. Aí a gente sente, eu vou fazer. E também se errar no valei minha Virgem da Conceição, num se meta, não! Duas vezes, a gente faz o parto, mas é meio perigoso. Agora nas três, se errar, num vá não, que aí o bicho pega. É problema de tirar pra médico. Ou acontecer um caso da criança morrer, ou causa de perigo!”.
Na localidade de Trindade, boa parte das parteiras participou dos cursos de capacitação para parteiras tradicionais e muitas afirmam que passaram a adotar algumas mudanças em suas práticas depois das capacitações como, por exemplo, orientar sobre a importância das gestantes fazerem o pré-natal, usar luvas na assistência ao parto, fazer o exame de toque para verificar a dilatação do colo uterino, estimular a amamentação nas primeiras horas de vida do bebê e só dar banho no dia seguinte após o nascimento, são algumas das mudanças identificadas. “A gente passou a assistir as capacitações, você aprende coisas novas! Cada vez vai trocando experiência com as outras, vai ensinando o que você sabe, vai aprendendo o saber das outras, vai trocando experiência… A gente vive uma vida que as coisas vai mudando, vai modificando, e você vai pegando a notificação das coisas”.
Agradecimentos » A Maria dos Prazeres de Souza, D. Prazeres – responsável por semear esse projeto nas nossas cabeças. » A todas as parteiras entrevistadas que se dispuseram a compartilhar informações sobre suas trajetórias, suas práticas e suas vidas. » A Paula Viana, como indivíduo e como representante do Grupo Curumim pelo incentivo, apoio e cessão de dados e informações. » À antropóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira, consultora desse projeto, somos gratas pela luz de suas preciosas orientações. » A Socorro Araújo, da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) pelo apoio e contribuição de informações. » A Lílian Sampaio, da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco, pela prontidão e ajuda. » Às técnicas do IPHAN, em especial a Elaine Muller, pelo envolvimento, cuidado e atenção com o projeto. » À toda a equipe pelo empenho e contribuição na construção do inventário. » Às Prefeituras Municipais de Trindade e de Palmares pelo apoio com o transporte. » Aos bebês que chegaram por inspiração deste projeto, durante sua execução: Lourenço e Francisco, de Elaine (ambos nascidos pelas mãos da parteira Maria dos Prazeres de Souza); Vicente, de Júlia, Rudá, de Dan, e Leonardo, de Bárbara.
FICHA TÉCNICA Coordenadora geral: Sumaia Vieira Coordenadora de pesquisa: Júlia Morim Supervisora de pesquisa: Dan Gayoso Pesquisadoras: Danielle Andrade - Caruaru Bárbara Luna - Igarassu e Ipojuca Marina Maria Teixeira - Jaboatão dos Guararapes Aíla Patrícia Carneiro - Palmares Maria Joseane Ferreira - Trindade Jacira França Fotógrafo: Eduardo Queiroga Técnico administrativo: George Michael Alves Voluntárias: Janaiky Pereira e Sonia Sinimbu Consultora em Antropologia NASEB/UFPE: Profa. Maria Aparecida Lopes Nogueira Bolsistas PIBIC/UFPE: Alessandra Melo e Alana Figuerôa Realização: Instituto Nômades Parceria: Universidade Federal de Pernambuco Apoio: Grupo Curumim, Fundação Joaquim Nabuco, Iphan Patrocínio: Petrobras, Ministério da Cultura/Governo Federal