19/05/2023

Mãos em Prece

Mãos em prece se apoiam no rosto. Olhos fechados. Os lábios movimentam sussurros inaudíveis. Pedido. Decreto. Um mundo inteiro vem e pede passagem, desafiando a física: a Roda Grande se apresenta na passagem da Roda Pequena. Cabeça caminha pelo canal. Porta. Entre o céu e a terra. A gravidade chama. Desce. Chega. Passa uma cabeça, uma gira, um corpo inteiro, um mundo de pulsar pela porta fêmea mulher. Nasce uma vida. Milhares, milhões. A todo minuto, instante.

Helena Tenderini conduz roda de gestantes

Na noite dos mundos, na escuridão da madrugada, crianças nascem. Preferem, quase sempre, a lua que balança as águas. Que as domina.

Conceber é a explosão do fogo!
Nascer é fluir como água!
Parir é o chão da terra!
Viver é deixar entrar o ar!

Depois, tudo se junta. Sem os quatro elementos não há vida! Não se concebe, não se nasce, não se pari, não se vive. Somos quatro em um, um em quatro. Ser parteira é saber disso no coração e nas mãos. Cuidar da vida que chega nesse mundo é cuidar dessa fronteira tão tênue. Não dominamos a natureza, nem a controlamos. Compreender que dela somos parte é entender que a vida é forte demais em sua fragilidade e infinitamente frágil em sua força. Ela é independente. Autônoma. Mistério.

Ouvir as histórias de tantas parteiras, tantas mulheres que tem essa força, esse encanto, essa missão, foi essencial para me tornar parteira. Não foi uma escolha, raramente é. Simplesmente acontece. Com tantas e comigo!

Quando uma criança chega, todo o mundo para pra recebê-la. O vento não balança as folhas, não existe cheiro no ar. O silêncio se alastra e invade nossos ouvidos. Nada se ouve, nada se fala, tudo se escuta. Respiração em suspenso. Os movimentos parecem lentos. Tudo fica à espera da chegada da grande luz. É uma eternidade, um instante. Um mundo entrando no outro. Velocidade. Os olhos recém-nascidos estranham a luz! Demoram a se adaptar. Já não estão nas águas. Tudo é diferente. Quando a Roda Grande passa pela Roda Pequena, outro lado atravessa pro lado de cá!

Eu estava grávida do meu quarto filho. Minhas três gestações anteriores já haviam sido acompanhadas por parteiras tradicionais do Cais do Parto, com muito amor e cuidado. Meu primeiro filho, e minha menina foram acompanhados por Suely Carvalho, minha madrinha e mestra na partería. Nos tornamos comadres, suas mãos e seu coração de parteira receberam minha filha neste mundo! Quando engravidei de meu terceiro filho, o Cais já estava sendo conduzido por Marcely Carvalho, filha de Suely sua herdeira na partería. E quando engravidei de meu caçula fiz minha formação como doula na tradição e um outro universo começou a se abrir em mim. Viajei até Olivença (Bahia) para participar de uma formação com parteiras indígenas de vários estados do Nordeste, conduzida por Suely. Ali, na Bahia, no território Tupinambá, com Suely, com muitas mulheres indígenas, parteiras, jovens, senhoras, guerreiras e eu grávida de sete meses de meu quarto filho, senti a força desse universo. Estava a dois meses de parir meu quarto filho e as ideias borbulhavam… Conhecia a todo instante mulheres guerreiras, parteiras, indígenas de força e fé! Que carregam a chama da luz em seus corações, em suas palavras e em suas histórias! Voltei pra Pernambuco com a poesia das mãos dessas parteiras, apalpando meu coração e crescendo em meu ventre junto com meu filho. Dois meses depois nos reencontramos no IX Congresso de Parteiras Tradicionais, no mangue de Igarassu, lugar do encontro das águas do rio com o mar. Como o Velho Chico e o Atlântico, como o sertão e o litoral. Aquelas águas da maré do litoral norte se movimentavam e saí do congresso para – poucos dias depois – parir meu filho caçula em novembro de 2013.

De lá pra cá vivi a emoção de acompanhar partos com Marcely, integrar sua equipe, carregando sua bolsa de parteira. De receber sozinha bebês na zona da mata norte pernambucana; conduzir um trabalho miúdo e imenso de acompanhar mulheres grávidas e bebês. De ser abençoada nas minhas mãos por vidas que chegam, cuidando desde meu lugar, meu território, o Sítio Malokambo em Tracunhaém. Foi nesse chão que pensei sobre os Saberes das Mãos e coloquei meu pensamento na palavra, quando estive antropóloga pesquisadora do Inventário Nacional das Parteiras Tradicionais do Brasil. Saberes das Mãos são aqueles que estão na origem do que é ser humano e, que com o devorar da humanidade pelo capitalismo, vem ficando cada vez mais escassos. São os saberes relacionados ao plantio, à colheita, ao preparo dos alimentos, dos remédios de plantas, a benzedura e a reza, o partejar, o cuidar pelo toque, massagens, banhos, a costura, o bordado e muitos tantos saberes que vem das mãos. Especialmente das mãos mulheres. A prática e ofício da partería são dos mais antigos e belos saberes das mãos. Sou parteira aprendiz desses saberes, com muita honra e agradecimento a todas que me iniciaram e seguem comigo nessa caminhada!

(este texto contém trechos do livro Mestras do Nascer – as parteiras indígenas Pankararu, com organização de Helena Tenderini)

Helena Tenderini

Mãe de 4 filhos, parteira, rezadeira, artista, educadora, antropóloga, produtora cultural e cuidadora. Tem mestrado em Antropologia e graduação em Artes Cênicas. Poeta e artista já publicou livros sobre plantas, cuidados, rezadeiras e parteiras.


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