O processo colonial teve como projeto político a coloniadade do poder, do ser e do saber, invisibilizando os saberes tradicionais por um conhecimento ocidental e “moderno”. O pensamento foi hierarquizado situando o outro e o diferente numa condição de menor, não-científico, “senso comum” e particular. Desse modo, precisamos ter um tipo de opção política que descolonize os pensamentos, considerando que todo tipo de conhecimento é localizado, tem um gênero, uma etnia, uma raça e uma classe social. Assim, apoiar determinados grupos sociais faz parte das lutas políticas que precisamos fazer para criar visibilidade e modos de vida que se fazem presentes nos diferentes territórios do cuidado.
As parteiras tradicionais fazem parte desse grupo de mulheres que atuam nas regiões remotas da Amazônia, sempre estiveram lá, e não precisam que “demos” voz a elas, pois tem a sua própria voz e, mais do que isso, tem uma prática, que é concreta. Toda prática tem um pensamento que se produz na enunciação e na construção dos modos de vida. A palavra-pensamento esconde e revela formas e fórmulas de como cuidar da vida das pessoas. Assim, as mulheres ribeirinhas da Amazônia têm um pensamento e uma prática que, literalmente, produz vida.
Em algumas sociedades indígenas não havia a figura da parteira porque era um ato familiar e o parto era realizado pela mãe, pai, avó, com a atuação e o benzimento do rezador e pajé. O nascimento é, portanto, um fenômeno social e envolve rituais e práticas que preparam a criança para viver nesse mundo. Assim, quem faz o parto tem a responsabilidade não somente pelo ato biológico, em si, mas também pela inserção da criança num mundo social e habitado por tantas gentes, sejam humanos e não humanos. O nascimento pode ser considerado uma estratégia de resistência de muitos povos, pois continuam lutando contra o preconceito e os processos de morte.
Desse modo, fazer pesquisa e escrever sobre e com as parteiras é uma forma de construir pensamentos-outros que problematize diversos projetos políticos e de gestão do parto-nascimento. Os movimentos de escrita participativa é uma forma de discutir determinada racionalidade que se constituiu no mundo ocidental através das suas disciplinas e teorias. Desse modo, há necessidade de realizarmos uma epistemologia das ausências, como nos ensina o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, para produzir presenças e outras formas de construção do conhecimento. A partir desses pressupostos teóricos, políticos, epistemológicos e práticos é que conduzimos os projetos institucionais.
O projeto “Redes Vivas e Práticas Populares de Saúde: Conhecimento Tradicional das Parteiras e a Educação Permanente em Saúde para o Fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde da Mulher no Estado do Amazonas” , coordenado pelo Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia – LAHPSA/Fiocruz Amazônia, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas – SES/AM, com financiamento do Ministério da Saúde, que desde 2016 tem desenvolvido atividades com as parteiras tradicionais. Uma das atividades do projeto foi a realização das oficinas “Troca de Saberes” que promove o encontro das parteiras nos municípios amazonenses e nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).
No contexto do projeto é que se deu a criação da Associação das Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas – Algodão Roxo – APTAM, em 2018, quando passamos a apoiar as ações da diretoria, que é formada por parteiras de 07 municípios do Amazonas. A Associação tem se constituído como um ator político e tem como pauta política a valorização do trabalho das parteiras.
No desenvolvimento desse e de outros projetos realizados com as parteiras, fomos entendendo a sua atuação nas comunidades, inclusive, em alguns casos, sendo proibidas de realizar o parto domiciliar. No acompanhamento do trabalho das parteiras temos visto a dificuldade de diálogo com alguns sistemas locais de saúde, especialmente com as equipes da Atenção Básica, e com gestores que não tem possibilitado a inclusão das práticas tradicionais no cuidado das gestantes. No entanto, observamos que há uma abertura e uma mudança de mentalidade de gestores e profissionais de saúde em relação da relação da parteira com a equipe de saúde.
O estado do Amazonas tem mais de mil parteiras, indígenas e não-indígenas, em atuação. Desse modo, não podemos ignorar a sua presença e a relevância do seu trabalho nas comunidades rurais e ribeirinhas da Amazônia. A ampliação do cuidado das gestantes nas áreas ribeirinhas, com a inclusão das parteiras nos sistemas locais de saúde e nas equipes e saúde, é uma estratégia inovadora de cuidado em saúde e necessita de uma transformação nos modos de “olhar” os saberes e os pensamentos do outro.
O trabalho das parteiras já é valorizado pelas comunidades ribeirinhas e indígenas, pois passa pela dimensão dos valores, da moral, da crença e do vínculo. Desse modo, deveria ser muito normal o exemplo de uma Unidade Hospitalar em área indígena, que permite a participação da parteira indígena e do rezador no momento do parto para a realização do parto e do benzimento. Isso significa que precisamos transformar as estruturas, os protocolos e regras das unidades de saúde para possibilitar o maior diálogo com a dinâmica da vida e com os modos da cultura. Por fim, podemos dizer que o pensamento-outro atravessa os nossos modos de fazer, ser e saber.
Júlio Cesar Schweickardt
Fiocruz Amazônia
julio.cesar@fiocruz.br