Em 2022 estamos comemorando dez anos desde que a imaginação de duas parteiras, lideranças em suas comunidades, Dona Zefinha (Caruaru, in memoriam) e Dona Prazeres (Jaboatão dos Guararapes), nos mobilizaram com a ideia de que as parteiras precisavam de um museu. O argumento inicial foi o de antiguidade: “Luiz Gonzaga é mais novo que as parteiras e já tem um museu”.
Nesses dez anos de projeto compartilhado entre acadêmicas, ativistas e parteiras, criamos uma série de narrativas biográficas, expográficas, fotográficas, audiovisuais, etnográficas… Nosso museu se constitui em suas ações e, portanto, é um museu experimental, sem paredes e marcado pela itinerância.
Hoje, vejo o que fazemos no Museu da Parteira como sendo descolonial, porque as parteiras são descoloniais. Onde poderia haver um risco intrínseco ao poder do museu de sacralizar – e num sentido extremo de fato tirar de ação, congelar, sobretudo quando partimos de um critério de antiguidade – temos visto a possibilidade de revisitação ou revitalização desse desejo inicial. Hoje, as parteiras têm falado muito do museu como uma instituição que diz respeito ao passado, ao presente e ao futuro, e têm discutido cada vez mais sobre o repasse do seu ofício. Nessa discussão, o que está em jogo também é uma epistemologia dialógica, simbiótica, como diz Prazeres. As parteiras não tem medo de se atualizarem, elas sabem que não deixarão de ser parteiras por estudarem, por aprenderem da biomedicina elementos que as auxiliem na assistência. As parteiras Pankararu são exemplo disso: durante a pandemia, elas têm atendido partos no território indígena como nunca, e ao mesmo tempo elas falam como o campiô é importante para a preparação do ambiente, elas fazem seus ritos, elas tem uma forma específica de saber qual erva vai ajudar cada mulher, e elas também utilizam luva, máscara, faceshield, toca, jaleco, teste de covid regularmente, para saberem que essas mulheres estão parindo na aldeia porque lá é mais seguro do que no hospital. Elas se valem da biomedicina no que ela é valiosa. As parteiras pankararu estão fazendo bem como diz dona Prazeres: misturando dois saberes sem machucar nenhum deles – essa é a simbiose das parteiras.
Onde poderia haver um risco de essencialismo, por estarmos falando de reprodução humana, por estarmos em uma chave heteronormativa, por estarmos falando da mulher típica vista como feita para reproduzir, as parteiras estão nos falando muito mais sobre a urgente necessidade de falarmos de justiça reprodutiva, do fim da violência obstétrica, da possibildiade de atender uma mulher em abortamento, por exemplo, sem julgar o que a levou até ali, apenas lhe prestando o cuidado que ela precisa. A pauta do lugar de parto é uma pauta política importantíssima, basta acompanhar os tantos ataques feitos por conselhos regionais de medicina e o próprio Ministério da Saúde atual que ignora toda a riqueza do parto em domicílio e como ele pode estar ancorado em elementos partilhados comunitariamente, identitariamente. Então antes de trazerem uma pauta de que todas as mulheres foram feitas para parir, as parteiras estão no museu ensinando que as mulheres que desejam parir precisam ser respeitadas nas suas escolhas.
Além disso, ainda nesse campo do gênero, o que as parteiras estão levando para o museu é essa relação íntima, próxima, familiar estabelecida entre mulheres a partir da maternidade. Elas são (e nós somos) comadres. Nas nossas pesquisas temos utilizado a categoria comadrio, que diz respeito aos laços estabelecidos pelas parteiras com as mulheres que elas atendem. Aqui. temos uma lógica completamente na contramão das relações biomédicas pautadas no capital. Isso é disruptivo demais, é algo que falta para muitas mulheres que vivenciam uma maternidade completamente solitária e sem rede de apoio.
Enfim, eu acho que as parteiras têm muito a ensinar para os saberes formais, como o nosso da academia, como o da biomedicina e o sistema oficial de saúde, e também para os museus. Eu diria que talvez fazendo a gente pensar sobre os poderes que os museus mobilizam (o seu potencial) as parteiras têm nos colocado as mesmas questões de partida que trazemos hoje: de que poderes se faz o museu? Que museus os poderes mobilizam? Será que eles têm incorporado epistemes como essa das parteiras tradicionais? De minha parte, por tudo que há de político no que as parteiras nos ensinam, eu estou cada vez mais convencida de que os museus precisam das parteiras.
Elaine Müller
Professora Associada do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Expolab – Laboratório de Expografia do Curso de Museologia (UFPE).
elaine.muller@ufpe.br
*Texto publicado originalmente no Museológicas Podcast, #128 De que poderes se faz o museu e que poderes os museus mobilizam? In: https://anchor.fm/museolgicas-podcast/episodes/128—De-que-poderes-se-faz-o-museu–Que-museu-os-poderes-mobilizam–Programa-de-3-Aniversrio-e1indau/a-a7uvke4