21/06/2023

Parteiras, comadres e madrinhas: notas acerca de um saber pautado no cuidado

Há 15 anos caminho junto com parteiras tradicionais de Pernambuco. Conheci esse universo quando estava grávida, em 2005, e fui adentrando-o a partir de 2008 por meio de uma pesquisa que lançava um olhar para os saberes e as práticas das parteiras tradicionais sob o prisma da cultura, concebendo-os como parte integrante do patrimônio cultural do país. Desde então, essa relação vem sendo tecida por meio de pesquisas, projetos, ações, trocas, viagens, encontros, abarcados na proposta concretizada como o Museu da Parteira, que congrega tudo isso e muito afeto.

Júlia e Prazeres em frente ao poster do filme Simbiose
Prazeres e Júlia em frente ao cartaz do filme Simbiose.

Ao conversar com diversas mulheres-parteiras ao longo desses anos fui ouvindo suas narrativas sobre como se torna parteira, como se aprende a ser parteira, como é a sua atuação, seus saberes e suas práticas, quais significados são atribuídos ao ofício, qual seu lugar ocupado na comunidade. Nesse texto, apresento algumas notas sobre aspectos que constituem esse ofício, a partir de falas de Dona Prazeres, registradas no filme Simbiose, e de parteiras Pankararu, registradas no filme Nossas Mãos são Sagradas. Destaco que, apesar das diferenças regionais, e das diversas realidades vividas, há características que são cerne do ser parteira, que encontramos em todo país. Ou seja, a forma de atuação da parteira se assemelha, havendo variações no uso de ervas, rezas e técnicas, pautando-se em um paradigma do cuidado.

Como se torna parteira? “Quando não vem já de família, do sangue, a gente pode se tornar aprendendo com as outras mais velhas”, diz Darinha Pankararu. O dom, a necessidade do momento e/ou assumir o lugar de uma mulher mais velha – mãe, tia, parteira – são possíveis caminhos para tornar-se parteira, tendo como fato instituinte a assistência a um primeiro parto. Entretanto, o dom é um aspecto essencial, pois muitas mulheres “pegam menino” mas não se mantêm no ofício. “Eu acho que eu já trouxe o dom de natureza, viu, porque ninguém não me ensinou não”, diz Juliana Pankararu.

Aprendizado na prática. “A gente geralmente acompanha Dôra. Ela vai passando, mostrando como é. Geralmente ela fica ali só auxiliando, vendo como é que a gente faz”,  diz Darinha. O aprendizado se dá na prática e na oralidade: acompanhando uma parteira, ajudando em seu trabalho, vendo e ouvindo as orientações ou na troca e no compartilhamento de experiências entre mulheres e entre parteiras. O contar e escutar causos e histórias, ou seja, narrativas de conhecimento empírico, constróem também essa sabedoria, que está em constante aprendizagem. “A gente se senta, conversa, troca as ideias. Cada parto é um diferente do outro. Nenhum é igual. Então cada uma tem uma coisa pra contribuir”, relata Darinha. 

Curiosidade. Muitas parteiras contam que eram muito curiosas. Escondiam-se por trás de portas ou embaixo de camas para ver partos, algo proibido para menores e moças, ou então para ouvir histórias das mulheres mais velhas, já experientes em dar à luz a seus filhos. O ouvido e o olhar atentos estão entre os atributos da parteira. 

Disponibilidade. “Tem que ter saúde, tempo disponível pra fazer aquele trabalho, coragem e força de vontade porque se a pessoa não tiver nada disso e querer ajudar o próximo, não faz nada, não.”  (…) “ Eu, não tem hora, não tem sol quente, não tem chuva que empate eu ir”, explica Mãe Dôra. A parteira pode ser chamada a qualquer hora, dia ou noite, e não sabe quanto tempo estará fora de sua casa, portanto é preciso estar disponível. “Se for pra ficar um dia, dois, três, ela fica. Depois que ela faz o parto, ela continua com a mulher até ela ter certeza”, diz Neide.

Coragem e amor. Para continuidade, é preciso gostar do ofício, uma vez que ele demanda doação. [É preciso] “Ter muita paciência, muita coragem e amor pelo que tá fazendo”, reforça Juliana Pankararu. 

O ofício se pauta em uma lógica de cuidar de outra mulher, que como ela, passa pelo processo de gestação parto e puerpério. Há o compartilhamento de experiências. Muitas dizem: como não vou ajudá-la se eu já passei por isso, sei como é e outra mulher me ajudou antes? É um ofício de saberes compartilhados entre mulheres.

Além de parteiras, essas mulheres exercem outras atividades. São vendedoras, agricultoras, agentes de saúde, auxiliares de enfermagem, técnicas de enfermagem, costureiras, benzedeiras, pescadoras, donas de casa, feirantes. Ser parteira é mais uma atividade de seu cotidiano.

Relação estabelecida com mulheres, famílias e comunidade. “Tem que ter confiança tanto sua, pessoalmente, como da gestante, da família”, explica Jacira, aprendiz de parteira. Há uma relação de confiança das mulheres, famílias e comunidade para com a parteira. O compartilhamento do universo sociocultural e a conduta da parteira colabora no estabelecimento de um vínculo de proximidade. “As mulheres que têm o bebê, que a parteira pega, elas sempre chamam de comadre”, confirma Luzânia, aprendiz de parteira.

Comadre. O reconhecimento e a retribuição pelo trabalho se expressam no estabelecimento de laços que permanecem por longo tempo, ou seja, por relações de comadrio. As parteiras são chamadas de mães de umbigo, mães, vós, tias, madrinhas por aqueles que ajudaram a nascer e de comadre pelas mulheres a quem prestaram assistência. 

Relação com o tempo. A relação das parteiras com o tempo é outra se compararmos ao tempo hospitalar. É o tempo do corpo. O tempo do processo de parto. Não o tempo do relógio. A parteira pode ajudar nesse processo, por exemplo, “esquentando” o corpo oferecendo um chá para ajudar as dores a aumentarem. Muitas vezes, caso não aumente, é porque não é hora. É preciso aguardar.

Fé e religiosidade. “Quando a gente sai de casa a gente já faz nossos pedidos, a gente já faz nossas orações”, declara Mãe Dora. Muitas parteiras relatam que estão sempre pedindo para que tudo ocorra bem, desde a saída de sua casa até o nascimento da placenta (momento está muitas vezes denominado de parto). 

Entendimento do Corpo. O corpo é visto de forma integral (biológico, psicológico) e não compartimentado. O processo é entendido como natural, que pode ser ajudado, mas não precisa ser conduzido. Na assistência prestada há uma incentivo à mulher (“é assim”, “faz parte”, “tá tudo certo”), há demonstração de afeto, e são dadas orientações sobre como lidar com o processo, com liberdade para a mulher.

Limites de atuação. “Tudo tem limite. E por isso que temos tanto sucesso”, nos diz Dona Prazeres, parteira de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, e Patrimônio Vivo do Estado. As parteiras lidam com partos fisiológicos e, quando não é de sua alçada, encaminham a mulher ao hospital, para o atendimento necessário que está além do que a parteira pode prestar. 

Centralidade das mãos. As mãos são o instrumento da parteira. Há a centralidade da atuação nas suas mãos. São as mãos que massageiam, que alisam, que percebem o processo de parto, que sentem. “Os olhos das parteiras estão nas mãos”, conta Dona Prazeres. 

Cuidado integral. A parteira atua antes, durante e depois do parto, de forma integral, cuidando das mulheres. Orienta quanto ao uso de remédios caseiros, garrafadas, banhos, chás, bem como no que diz respeito ao cuidado na alimentação. Há um repertório do que se pode ou não se comer em cada fase para uma boa gestação, bom parto e bom resguardo. Ela escuta e aconselha acerca de temas que vão além da saúde. 

A responsabilidade pelo ofício. Para as parteiras, seu trabalho é de enorme responsabilidade, pois entendem estarem salvando duas vidas. Ao atender um parto, elas são responsáveis tanto pelo bem estar da mulher, quanto da criança. 

A beleza do momento. A beleza do nascimento, a emoção que envolve, o fato de serem as primeiras a receber e a tocarem na pessoa que chega no mundo é um aspecto destacado como um privilégio. 

Atuação ampla e ampliada. O trabalho da parteira não se detém ao ciclo de gestação, parto e puerpério. Elas são puericultoras, cuidam das crianças, dos adultos, dos mais velhos. São referências não só em saúde, mas também como mediadoras de conflitos. São psicólogas, advogadas, juízas, como costumam dizer. Por isso, ocupam lugar de respeito nas comunidades onde atuam e vivem.

Encontro de Parteiras Indígenas 2017
Encontro de Parteiras Indígenas de Pernambuco, 2017.

As parteiras estão em atuação no país não porque o serviço de saúde não chegou a determinado local, mas pela forma que desempenham seu trabalho, por escolha das mulheres a uma assistência próxima que consideram mais adequada. Por confiança da comunidade. O discurso muitas vezes propagado de que parteiras existem porque não há assistência médica é um discurso que toma o saber médico, hegemônico, como o ideal, melhor e que deve ser o único, demonstrando uma hierarquização de saberes da assistência ao parto e na saúde como um todo.

As parteiras, inclusive, atuam em articulação com o Serviço Único de Saúde (SUS), encaminhando mulheres para o pré-natal, ao hospital, como já mencionado, cuidando, assim, do seu bem-estar. Operando nessa lógica, as parteiras articulam saberes, fazem a simbiose, como diz dona Prazeres, lançando mão também de técnicas e recursos “do outro lado”, misturando as duas matrizes de conhecimento, falando as duas línguas, “sem machucar nenhuma”, sempre com foco no cuidado com as mulheres.

Júlia Morim
Antropóloga
jmorim79@gmail.com


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