25/04/2022

Rede de Apoio e Salvaguarda dos Saberes entre as Parteiras Tradicionais do Arquipélago do Bailique (Macapá/AP)

Muito se ouve falar sobre o que faz uma mulher se tornar parteira. Nos diversos estudos que tratam sobre a temática (Barroso, 2001; Fleischer, 2007; Pinto, 2010; Nascimento, 2018), predomina nos discursos dessas mulheres um dom divino, o aprendizado por meio da necessidade do momento, ou observações indiretas e diretas pelas interlocutoras dos atendimentos realizados por parteiras mais velhas. Apesar dessas observações, não se tinha como objetivo final o se tornar parteira. Apenas curiosidade sobre tal atividade.

O Arquipélago do Bailique, distrito de Macapá, capital do estado do Amapá, aponta uma realidade diferente das parteiras do resto do Brasil no que tange à forma de aprendizado na região. O arquipélago fica a 12 horas de barco do centro urbano da capital e abriga pouco mais de 50 comunidades, divididas entre as oito ilhas. São 7.618 habitantes, número que representa 2% da população do município de Macapá. O Arquipélago é composto por comunidades ribeirinhas com casas suspensas em palafitas, tendo como quintal o Rio Amazonas. Segundo dados da Rede Estadual de Parteiras Tradicionais do Amapá Tia Vavá, a região contava com 87 parteiras tradicionais cadastradas no ano de 2014. Na vila principal, Progresso, há uma “casa de parto” ou “casa das parteiras” como é comumente chamado pela comunidade. No local, os partos são realizados pelas parteiras tradicionais da região e lá também é o espaço utilizado para reuniões da Associação de Parteiras Tradicionais do Arquipélago do Bailique.

Fotografia de Eduardo Queiroga

Dados do Ministério da Saúde, de 2010, apontam que os partos na região eram realizados 100% por parteiras tradicionais. Através da Pesquisa dos Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil com vistas à instrução do Processo de Registro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, tivemos acesso, em 2019, à região e contato direto com as parteiras que ali atuavam. É importante ressaltar que os partos continuam sendo realizados exclusivamente pelas parteiras, uma vez que a unidade de saúde da região realiza o pré-natal e encaminha as gestantes para a capital quando estão próximas do momento do parto. As mulheres que decidem não ir para capital acertam com alguma parteira de sua confiança para que auxiliem no parto. 

Feita a apresentação da localidade e contextualização do cenário atual, voltamos à questão inicial, o processo de aprendizado das parteiras tradicionais do Arquipélago do Bailique e como elas se diferenciam do restante das parteiras do Brasil em suas narrativas e realidade. Tive contato com sete parteiras e através de suas histórias de vida apontarei as considerações sobre o processo de aprendizagem do partejar por elas. As parteiras tradicionais que nasceram e foram criadas em uma das ilhas habitadas do Arquipélago – Guimar, Elza, Leonice, Dionísia e Marieta – além de Raimunda Vanda que foi morar para a região aos 15 anos, tiveram uma história parecida acerca da iniciação no partejar. Todas começaram com aproximadamente 30 anos de idade ou mais e, a maioria delas, atuando no parto de suas familiares. A sétima parteira, Nazaré, nasceu em Breves/PA e foi a única que iniciou ainda jovem, aos 12 anos. Mudou-se para a região com mais de 30 anos e já atuante no partejar. É interessante pontuar isso, uma vez que Nazaré se aproxima da realidade das outras parteiras do Brasil na apreensão dos conhecimentos, então usaremos seu caso para explicar as diferenças entre as parteiras do Bailique e as parteiras de outras regiões. 

Apesar de todas terem iniciado no momento da necessidade, é importante pensar como os caminhos tinham sido guiados até o momento do partejar e como a necessidade se apresentou para cada uma. No caso das seis parteiras que iniciaram no Arquipélago, Guimar, Elza, Leonice e Dionísia tinham familiares parteiras – mães, sogras e avós –, Raimunda Vanda e Marieta não tiveram parteiras na família, mas foram direcionadas na hora do parto por alguém, seja por recomendações que receberam em seus próprios partos ou no momento em que precisavam ajudar outra parturiente. Todas tinham passado pela experiência do parto e algumas foram instruídas mais diretamente sobre o partejar – Guimar, Elza, Leonice, Dionísia e Marieta – sob a justificativa de que um dia isso poderia ser útil para ajudar suas familiares, dessa forma havia uma preocupação em repassar esses conhecimentos no sentido de formar uma rede de apoio entre as mulheres da família. 

Pontuarei muito rapidamente a experiência dessas mulheres, tomando como base Nazaré para apontar o processo de aprendizagem em outras localidades do Norte do Brasil, como aproximação aos dados já apresentados em outras pesquisas científicas, e coloco a forma de atuação das parteiras do Arquipélago para visualizarmos essa diferença. Marieta não tinha parteiras na família, o primeiro parto que realizou foi aos 30 anos, era o parto de sua neta, ou seja, a parturiente era sua filha. Conta que a parteira da família estava impossibilitada de realizar o parto, mas ficou ao lado lhe dizendo o que deveria fazer. Realizou em torno de trinta partos durante a vida, segundo ela, apenas cinco foram fora da família, concentrando sua atuação entre familiares. Raimunda Vanda não tinha parteiras na família, mas conta que sua mãe precisou de auxílio em alguns partos das irmãs e estes eram feitos por ela, como filha mais velha. Além disso, dois de seus partos foram feitos sozinhos, por ela mesma. Somente depois de seus trinta anos iniciou o partejar, ajudando a filha no nascimento do neto. Dessa forma, as experiências com a mãe e com seus próprios partos ajudaram nesse momento. 

Guimar, a mais jovem entre elas, era agente de saúde e sua mãe parteira, foi ela quem chamou a filha para ajudar no parto de uma mulher indígena e aproveitou para colocar a prova os conhecimentos da filha, para caso algum dia não estivesse presente e outras mulheres precisassem de ajuda, Guimar inclusive relatou que já ensinou uma prima e uma sobrinha sobre como proceder durante o partejar, esse ensinamento ocorre com ela chamando essas meninas para presenciarem seus atendimentos, seja de acompanhamento, seja do partejar. Elza foi ensinada pela sogra, e a maioria dos atendimentos que realizou foram para mulheres de sua família, quando chegamos ela tinha realizado nos dias anteriores o parto da sobrinha. Ela conta que assim como a sogra repassou, ela está levando sua nora para lhe acompanhar e aprender os ensinamentos sobre o partejar. Leonice é a parteira mais antiga que encontramos na região, ela começou a atender partos somente aos 43 anos, apesar disso, disse que já acompanhava a avó nos partos que está realizava na região, depois que casou, passou a acompanhar a sogra, que também era parteira e lhe repassava conhecimento alegando que não ficaria para sempre na terra. A parteira conta que ensinou suas filhas, caso precisem utilizar os conhecimentos, apesar disso, nem uma segue atuando como parteira. Vale ressaltar que os atendimentos de Leonice só iniciaram após sua sogra não mais atuar, ficando ela como substituta nos atendimentos das mulheres da região. Dionísia relembra que durante seus partos, a mãe, que era parteira e que realizava os atendimentos da filha, narrava tudo que estava realizando para que a filha fosse aprendendo, caso fosse colocada a prova, desta mesma forma fez com suas filhas, em um momento que a nora estava com dores e não estava em casa, as filhas colocaram em prática o que foi ensinado por ela, que ao chegar, verificou que tudo ocorreu corretamente. 

Nazaré, a única parteira que mora na região mas que iniciou o partejar ainda aos 12 anos de idade, narra uma experiência diferente da que é vista no Arquipélago. Ela foi convidada para fazer companhia para uma gestante enquanto o marido ia trabalhar, sua mãe concordou e ela seguiu para casa em questão. Quando a gestante começou a sentir dores, Nazaré se viu obrigada a proceder de alguma forma, preparou um leite quente e fez uma massagem para aliviar as dores da gestante, apesar da inexperiência o parto aconteceu com sucesso. Quando o marido chegou e foi levar Nazaré em casa contou à sua mãe, que era parteira, sobre o ocorrido, a parteira conta que ficou com medo da mãe lhe bater por ser um assunto de adultos e por temer ter feito algo errado, no entanto, depois disso a mãe começou a deixar Nazaré lhe acompanhar nos atendimentos para que pegasse mais prática e conhecimento sobre o partejar. 

Visualizamos assim, que nos casos das mulheres que moram no Arquipélago do Bailique, todas iniciaram um pouco mais velhas, já com experiência de seu próprio parto e/ou com as experiências repassadas por mulheres parteiras de suas famílias ou que acompanharam em alguma atividade relacionada ao partejar.  A preocupação no repasse era direcionada à necessidade de alguém para ajudar futuramente as filhas, sobrinhas e noras no momento do parto, uma vez que suas mães e avós tinham sido instruídas para isso e repassavam para elas as mesmas recomendações. O contexto atual ainda aponta para essa preocupação, uma vez que elas continuam repassando os conhecimentos para suas filhas, noras, primas e sobrinhas. Dessa forma, quando a necessidade surgia e apesar do nervosismo da primeira vez as parteiras do Arquipélago tinham noção das etapas que deveriam ser seguidas no momento do parto, o oposto do que ocorreu com Nazaré, que em sua primeira vez não tinha noção alguma sobre o partejar, nem por experiência própria, nem por recomendações, uma vez que sua idade não permitia os “assuntos com os mais velhos”. Foi somente após o primeiro parto realizado que começou a ser treinada pela mãe, que era parteira, sobre as técnicas e práticas do partejar. É importante ressaltar essa particularidade da região no sentido de que, como elas possuem essa explicação da apreensão dos conhecimentos, a narrativa do dom tão presente em outras pesquisas para justificar os conhecimentos do partejar, fica em segundo plano na realidade do Arquipélago, ela aparece, uma vez que afirmaram que ser parteira é parte de um dom divino, mas não explicam seus conhecimentos advindos unicamente por meio dele, elas apontam as responsáveis pelo aprendizado, personificando as instrutoras e buscando repassar seus conhecimentos para outras.

As parteiras tradicionais do Arquipélago do Bailique apreenderam e iniciaram o partejar majoritariamente no seio familiar, podemos inferir que pela preocupação das mães, avós e sogras em repassarem os conhecimentos para casos de necessidades futuras, uma vez que não há uma maternidade de acesso fácil e rápido na região. No entanto, se destacam pela rede de apoio formada entre as mulheres da família e comunidade como forma de não deixar em desamparo essa parturiente, que mesmo atualmente com a possibilidade de parir no hospital, indo até Macapá – pelo serviço de transporte aéreo (2h) ou fluvial que é uma lancha da prefeitura para casos urgentes, que faz o trajeto em seis horas, ou ainda pelo transporte fluvial convencional que leva 12h de viagem – optam pelo parto em casa. Vale ressaltar que os serviços de transporte aéreo e a lancha da prefeitura são gratuitos e devem ser agendados junto da unidade de saúde, já o transporte convencional deve ser arcado pela gestante. Como algumas possuem familiares na área urbana de Macapá optam pela maternidade, no entanto, apesar dos dados da Secretaria Municipal de Saúde e os dados do Governo Federal não é possível um número exato de partos em casa, pois como me relatou a enfermeira da Unidade de Saúde da Vila Progresso, algumas mães que optam por parir em casa e residem em uma das cinquenta ilhas que compõem o Arquipélago, só buscam a unidade em casos de doenças do bebê, sem o registro de nascimento, ou seja, pode levar anos até que a mãe busque algum serviço de saúde, segundo ela, já chegaram crianças com mais de três anos e sem registro de nascimento para atendimento.

Fotografia de Raysa Nascimento

Há uma escolha pelo parto domiciliar e junto de mulheres parteiras de sua confiança, pelo perfil da região, geralmente familiares, e que veem esse repasse do conhecimento tradicional sobre o partejar como uma forma de preservar esse espaço e ambiente acolhedor para as gestantes da região. Quando as parteiras falam sobre seus sentimentos ao atender o parto, explicam que sentem uma emoção por conseguirem salvar uma vida, por estarem ajudando outra mulher em um momento de dor e aflição. Em contrapartida, as atendidas explicam que optam pelo parto em casa, com parteiras, pela confiança e carinho com que são tratadas e ainda por estarem em suas casas, sem precisar se deslocar e sabendo que após o parto poderão estar em seu lar e continuando a ser cuidadas por suas famílias e parteira de confiança. Isso aponta uma busca pelas parteiras não unicamente pela ausência das unidades de saúde, mas pela segurança e cuidado efetuado por elas nos atendimentos. Indiretamente, as parteiras do Arquipélago do Bailique estão realizando práticas de Salvaguarda, seja no repasse dos conhecimentos sobre o partejar para outras mulheres da família e ainda com a atuação na casa de parto na região, sendo o espaço um local de resistência dessas técnicas e práticas do partejar tradicional, e como é possível perceber, tais ações são positivas e devem ser estimuladas e continuadas.

Muito se ouve falar sobre o que faz uma mulher se tornar parteira. Nos diversos estudos que tratam sobre a temática (Barroso, 2001; Fleischer, 2007; Pinto, 2010; Nascimento, 2018), predomina nos discursos dessas mulheres um dom divino, o aprendizado por meio da necessidade do momento, ou observações indiretas e diretas pelas interlocutoras dos atendimentos realizados por parteiras mais velhas. Apesar dessas observações, não se tinha como objetivo final o se tornar parteira. Apenas curiosidade sobre tal atividade.

O Arquipélago do Bailique, distrito de Macapá, capital do estado do Amapá, aponta uma realidade diferente das parteiras do resto do Brasil no que tange à forma de aprendizado na região. O arquipélago fica a 12 horas de barco do centro urbano da capital e abriga pouco mais de 50 comunidades, divididas entre as oito ilhas. São 7.618 habitantes, número que representa 2% da população do município de Macapá. O Arquipélago é composto por comunidades ribeirinhas com casas suspensas em palafitas, tendo como quintal o Rio Amazonas. Segundo dados da Rede Estadual de Parteiras Tradicionais do Amapá Tia Vavá, a região contava com 87 parteiras tradicionais cadastradas no ano de 2014. Na vila principal, Progresso, há uma “casa de parto” ou “casa das parteiras” como é comumente chamado pela comunidade. No local, os partos são realizados pelas parteiras tradicionais da região e lá também é o espaço utilizado para reuniões da Associação de Parteiras Tradicionais do Arquipélago do Bailique.

Dados do Ministério da Saúde, de 2010, apontam que os partos na região eram realizados 100% por parteiras tradicionais. Através da Pesquisa dos Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil com vistas à instrução do Processo de Registro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, tivemos acesso, em 2019, à região e contato direto com as parteiras que ali atuavam. É importante ressaltar que os partos continuam sendo realizados exclusivamente pelas parteiras, uma vez que a unidade de saúde da região realiza o pré-natal e encaminha as gestantes para a capital quando estão próximas do momento do parto. As mulheres que decidem não ir para capital acertam com alguma parteira de sua confiança para que auxiliem no parto. 

Feita a apresentação da localidade e contextualização do cenário atual, voltamos à questão inicial, o processo de aprendizado das parteiras tradicionais do Arquipélago do Bailique e como elas se diferenciam do restante das parteiras do Brasil em suas narrativas e realidade. Tive contato com sete parteiras e através de suas histórias de vida apontarei as considerações sobre o processo de aprendizagem do partejar por elas. As parteiras tradicionais que nasceram e foram criadas em uma das ilhas habitadas do Arquipélago – Guimar, Elza, Leonice, Dionísia e Marieta – além de Raimunda Vanda que foi morar para a região aos 15 anos, tiveram uma história parecida acerca da iniciação no partejar. Todas começaram com aproximadamente 30 anos de idade ou mais e, a maioria delas, atuando no parto de suas familiares. A sétima parteira, Nazaré, nasceu em Breves/PA e foi a única que iniciou ainda jovem, aos 12 anos. Mudou-se para a região com mais de 30 anos e já atuante no partejar. É interessante pontuar isso, uma vez que Nazaré se aproxima da realidade das outras parteiras do Brasil na apreensão dos conhecimentos, então usaremos seu caso para explicar as diferenças entre as parteiras do Bailique e as parteiras de outras regiões. 

Apesar de todas terem iniciado no momento da necessidade, é importante pensar como os caminhos tinham sido guiados até o momento do partejar e como a necessidade se apresentou para cada uma. No caso das seis parteiras que iniciaram no Arquipélago, Guimar, Elza, Leonice e Dionísia tinham familiares parteiras – mães, sogras e avós –, Raimunda Vanda e Marieta não tiveram parteiras na família, mas foram direcionadas na hora do parto por alguém, seja por recomendações que receberam em seus próprios partos ou no momento em que precisavam ajudar outra parturiente. Todas tinham passado pela experiência do parto e algumas foram instruídas mais diretamente sobre o partejar – Guimar, Elza, Leonice, Dionísia e Marieta – sob a justificativa de que um dia isso poderia ser útil para ajudar suas familiares, dessa forma havia uma preocupação em repassar esses conhecimentos no sentido de formar uma rede de apoio entre as mulheres da família. 

Pontuarei muito rapidamente a experiência dessas mulheres, tomando como base Nazaré para apontar o processo de aprendizagem em outras localidades do Norte do Brasil, como aproximação aos dados já apresentados em outras pesquisas científicas, e coloco a forma de atuação das parteiras do Arquipélago para visualizarmos essa diferença. Marieta não tinha parteiras na família, o primeiro parto que realizou foi aos 30 anos, era o parto de sua neta, ou seja, a parturiente era sua filha. Conta que a parteira da família estava impossibilitada de realizar o parto, mas ficou ao lado lhe dizendo o que deveria fazer. Realizou em torno de trinta partos durante a vida, segundo ela, apenas cinco foram fora da família, concentrando sua atuação entre familiares. Raimunda Vanda não tinha parteiras na família, mas conta que sua mãe precisou de auxílio em alguns partos das irmãs e estes eram feitos por ela, como filha mais velha. Além disso, dois de seus partos foram feitos sozinhos, por ela mesma. Somente depois de seus trinta anos iniciou o partejar, ajudando a filha no nascimento do neto. Dessa forma, as experiências com a mãe e com seus próprios partos ajudaram nesse momento. 

Guimar, a mais jovem entre elas, era agente de saúde e sua mãe parteira, foi ela quem chamou a filha para ajudar no parto de uma mulher indígena e aproveitou para colocar a prova os conhecimentos da filha, para caso algum dia não estivesse presente e outras mulheres precisassem de ajuda, Guimar inclusive relatou que já ensinou uma prima e uma sobrinha sobre como proceder durante o partejar, esse ensinamento ocorre com ela chamando essas meninas para presenciarem seus atendimentos, seja de acompanhamento, seja do partejar. Elza foi ensinada pela sogra, e a maioria dos atendimentos que realizou foram para mulheres de sua família, quando chegamos ela tinha realizado nos dias anteriores o parto da sobrinha. Ela conta que assim como a sogra repassou, ela está levando sua nora para lhe acompanhar e aprender os ensinamentos sobre o partejar. Leonice é a parteira mais antiga que encontramos na região, ela começou a fazer partos somente aos 43 anos, apesar disso, disse que já acompanhava a avó nos partos que está realizava na região, depois que casou, passou a acompanhar a sogra, que também era parteira e lhe repassava conhecimento alegando que não ficaria para sempre na terra. A parteira conta que ensinou suas filhas, caso precisem utilizar os conhecimentos, apesar disso, nem uma segue atuando como parteira. Vale ressaltar que os atendimentos de Leonice só iniciaram após sua sogra não mais atuar, ficando ela como substituta nos atendimentos das mulheres da região. Dionísia relembra que durante seus partos, a mãe, que era parteira e que realizava os atendimentos da filha, narrava tudo que estava realizando para que a filha fosse aprendendo, caso fosse colocada a prova, desta mesma forma fez com suas filhas, em um momento que a nora estava com dores e não estava em casa, as filhas colocaram em prática o que foi ensinado por ela, que ao chegar, verificou que tudo ocorreu corretamente. 

Nazaré, a única parteira que mora na região mas que iniciou o partejar ainda aos 12 anos de idade, narra uma experiência diferente da que é vista no Arquipélago. Ela foi convidada para fazer companhia para uma gestante enquanto o marido ia trabalhar, sua mãe concordou e ela seguiu para casa em questão. Quando a gestante começou a sentir dores, Nazaré se viu obrigada a proceder de alguma forma, preparou um leite quente e fez uma massagem para aliviar as dores da gestante, apesar da inexperiência o parto aconteceu com sucesso. Quando o marido chegou e foi levar Nazaré em casa contou à sua mãe, que era parteira, sobre o ocorrido, a parteira conta que ficou com medo da mãe lhe bater por ser um assunto de adultos e por temer ter feito algo errado, no entanto, depois disso a mãe começou a deixar Nazaré lhe acompanhar nos atendimentos para que pegasse mais prática e conhecimento sobre o partejar. 

Visualizamos assim, que nos casos das mulheres que moram no Arquipélago do Bailique, todas iniciaram um pouco mais velhas, já com experiência de seu próprio parto e/ou com as experiências repassadas por mulheres parteiras de suas famílias ou que acompanharam em alguma atividade relacionada ao partejar.  A preocupação no repasse era direcionada à necessidade de alguém para ajudar futuramente as filhas, sobrinhas e noras no momento do parto, uma vez que suas mães e avós tinham sido instruídas para isso e repassavam para elas as mesmas recomendações. O contexto atual ainda aponta para essa preocupação, uma vez que elas continuam repassando os conhecimentos para suas filhas, noras, primas e sobrinhas. Dessa forma, quando a necessidade surgia e apesar do nervosismo da primeira vez as parteiras do Arquipélago tinham noção das etapas que deveriam ser seguidas no momento do parto, o oposto do que ocorreu com Nazaré, que em sua primeira vez não tinha noção alguma sobre o partejar, nem por experiência própria, nem por recomendações, uma vez que sua idade não permitia os “assuntos com os mais velhos”. Foi somente após o primeiro parto realizado que começou a ser treinada pela mãe, que era parteira, sobre as técnicas e práticas do partejar. É importante ressaltar essa particularidade da região no sentido de que, como elas possuem essa explicação da apreensão dos conhecimentos, a narrativa do dom tão presente em outras pesquisas para justificar os conhecimentos do partejar, fica em segundo plano na realidade do Arquipélago, ela aparece, uma vez que afirmaram que ser parteira é parte de um dom divino, mas não explicam seus conhecimentos advindos unicamente por meio dele, elas apontam as responsáveis pelo aprendizado, personificando as instrutoras e buscando repassar seus conhecimentos para outras.

As parteiras tradicionais do Arquipélago do Bailique apreenderam e iniciaram o partejar majoritariamente no seio familiar, podemos inferir que pela preocupação das mães, avós e sogras em repassarem os conhecimentos para casos de necessidades futuras, uma vez que não há uma maternidade de acesso fácil e rápido na região. No entanto, se destacam pela rede de apoio formada entre as mulheres da família e comunidade como forma de não deixar em desamparo essa parturiente, que mesmo atualmente com a possibilidade de parir no hospital, indo até Macapá – pelo serviço de transporte aéreo (2h) ou fluvial que é uma lancha da prefeitura para casos urgentes, que faz o trajeto em seis horas, ou ainda pelo transporte fluvial convencional que leva 12h de viagem – optam pelo parto em casa. Vale ressaltar que os serviços de transporte aéreo e a lancha da prefeitura são gratuitos e devem ser agendados junto da unidade de saúde, já o transporte convencional deve ser arcado pela gestante. Como algumas possuem familiares na área urbana de Macapá optam pela maternidade, no entanto, apesar dos dados da Secretaria Municipal de Saúde e os dados do Governo Federal não é possível um número exato de partos em casa, pois como me relatou a enfermeira da Unidade de Saúde da Vila Progresso, algumas mães que optam por parir em casa e residem em uma das cinquenta ilhas que compõem o Arquipélago, só buscam a unidade em casos de doenças do bebê, sem o registro de nascimento, ou seja, pode levar anos até que a mãe busque algum serviço de saúde, segundo ela, já chegaram crianças com mais de três anos e sem registro de nascimento para atendimento.

Há uma escolha pelo parto domiciliar e junto de mulheres parteiras de sua confiança, pelo perfil da região, geralmente familiares, e que veem esse repasse do conhecimento tradicional sobre o partejar como uma forma de preservar esse espaço e ambiente acolhedor para as gestantes da região. Quando as parteiras falam sobre seus sentimentos ao atender o parto, explicam que sentem uma emoção por conseguirem salvar uma vida, por estarem ajudando outra mulher em um momento de dor e aflição. Em contrapartida, as atendidas explicam que optam pelo parto em casa, com parteiras, pela confiança e carinho com que são tratadas e ainda por estarem em suas casas, sem precisar se deslocar e sabendo que após o parto poderão estar em seu lar e continuando a ser cuidadas por suas famílias e parteira de confiança. Isso aponta uma busca pelas parteiras não unicamente pela ausência das unidades de saúde, mas pela segurança e cuidado efetuado por elas nos atendimentos. Indiretamente, as parteiras do Arquipélago do Bailique estão realizando práticas de Salvaguarda, seja no repasse dos conhecimentos sobre o partejar para outras mulheres da família e ainda com a atuação na casa de parto na região, sendo o espaço um local de resistência dessas técnicas e práticas do partejar tradicional, e como é possível perceber, tais ações são positivas e devem ser estimuladas e continuadas.

Raysa Nascimento
Antropóloga e Professora do Instituto Federal de Roraima (CAM/IFRR)
raysanascimento.rn@gmail.com



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