02/06/2022

Entre as fotografias e o museu

foto: Eduardo Queiroga – Tacaratu – Aldeia Brejo dos Padres – abril/2013
Exposição Parteiras, um mundo pelas mãos. Uso autorizado apenas para divulgação da exposição.

A minha relação com a fotografia já tem algumas décadas de existência e tem me levado a caminhos, espaços e experiências muito diferentes entre si. Quando fui convidado para me aproximar do universo das parteiras tradicionais, não tinha ideia de que isso se desdobraria em vivências tão ricas, de tanto aprendizado e acolhimento. De 2008 para cá foram vários os projetos e ações, muitas as viagens, escutas e fotografias envolvendo parteiras que atravessaram o meu viver. Tanta sabedoria e humanidade que essas mulheres compartilharam comigo!

Tive a alegria de viver muito de perto o surgimento do Museu da Parteira, como os desejos e os trabalhos foram dando forma a isso tudo. Uma ação se desdobrando em outra, uma vontade gerando novas ideias, muito diálogo e troca, um monte de ajustes e esforços coletivos.

A fotografia cumpriu diversos papéis nesse percurso. Talvez o mais objetivo e primeiro a ser citado seja aquele que está mais ligado à documentação, aos registros nos inventários, como parte da pesquisa de campo, em paralelo às entrevistas e outras interações. Ali a demanda é bem específica: contribuir com informações visuais sobre as entrevistadas e seus saberes, dentro do volume amplo de material produzido na pesquisa. Mas, durante todo esse tempo, não nos limitamos às demandas mais diretas e prioritárias. Tivemos a liberdade de produzir um material bem mais aberto, que possibilitaria outros usos e articulações, e isso se mostrou muito importante para o que aconteceria depois. 

A imagem fotográfica, entre muitas outras características que lhe são próprias, age em uma lógica de suspensão: uma fotografia é produzida em um determinado momento, dentro de um fluxo de acontecimentos. Retiramos um recorte de determinado contexto e depois colocamos aquela imagem em um outro contexto, como uma publicação, um site, um relatório ou um livro, por exemplo. Nesse movimento de ser pinçada do mundo real e passar a formar uma narrativa, ela pode assumir diferentes significados. No nosso dia a dia cheio de imagens isso é muito presente, mesmo que a gente não pare para pensar no assunto. Algumas fotos servem ao discurso jornalístico da informação, outras estão mais ligadas às nossas memórias afetivas com entes queridos e outras podem nos estimular um prazer estético, independente do valor informativo ou afetivo, para citar casos bem simples.

No nosso percurso de gestação, nascimento e crescimento do Museu da Parteira, além daquele primeiro motivo mais de documentação, vimos as fotos voltarem para as comunidades por onde passamos fotografando, na forma de exposição, na forma de publicação e, também, como recordação ou recursos didáticos. 

foto: Eduardo Queiroga – Vila de Cimbres, Xukuru, Pernambuco.
Exposição Parteiras, um mundo pelas mãos. Uso autorizado apenas para divulgação da exposição.

Na exposição itinerante “Parteiras, um mundo pelas mãos”, as imagens ocuparam praças, terreiros e arruados, assim como escolas, associações e clubes. Voltamos em quase todos os lugares onde a pesquisa havia passado, não apenas devolvendo simbolicamente o que foi compartilhado pelas parteiras, mas também transformando estas oportunidades em novas rodas de trocas de saberes, em chances de diálogo com representantes do poder público local. A fotografia quase como um pretexto para outras coisas bem mais potentes. Ocupamos espaços públicos com uma exposição de fotografia em localidades que não costumam ter esse tipo de oferta de produtos culturais. Em paralelo, havia a distribuição de catálogos, postais, cartazes e outros materiais de apoio que promoveram uma sobrevida, um maior pertencimento e difusão dos saberes das parteiras. E isso tudo estimula o interesse da população, entrevistas nas rádios, reuniões com secretarias da saúde e visitas de estudantes, promovendo o debate sobre a atuação das parteiras nessas comunidades.

As fotografias também têm circulado em artigos científicos, congressos, eventos acadêmicos e publicações voltadas para a pesquisa, que se desdobram em novos estudos nos níveis da graduação e da pós-graduação.

Quando produzi o fotolivro “Cordão”, que é um recorte mais pessoal e subjetivo da minha produção, também priorizei levá-lo primeiramente para as localidades onde estão as parteiras fotografadas e, em cada uma delas, geramos novas oportunidades de trocas e debates entre parteiras e com a sociedade mais ampla. Posso citar diversos encontros muito emocionantes, mas vou focar em dois. O lançamento do “Cordão” em Caruaru aconteceu em diálogo com a UFPE. Foi muito emocionante ver as parteiras falando para um público enorme formado prioritariamente por estudantes de comunicação e medicina – futuros comunicadores/as e médicos/as –, permitindo uma outra lógica que não a do preconceito sofrido pelas parteiras em muitas instituições da saúde e do conhecimento. Ali vi os olhos de alunas e alunos brilharem ao ouvirem as histórias e sabedorias daquelas mulheres.

Ou quando fomos lançar o livro no território Xukuru e ter alunos das escolas locais lotando um salão imenso, com a presença do cacique e outras lideranças, com direito a Toré e falas muito poderosas. Ali vimos o esforço de uma jovem Xukuru mover montanhas para garantir que o parto de seu filho seria feito dentro do território indígena, por uma parteira indígena – a norma vigente da Secretaria da Saúde na época determinava que todos os partos deveriam ser feitos na maternidade do município (Pesqueira, no caso), fora das terras Xukurus. O que aconteceu ali vai muito, mas muito além de qualquer objetivo previsto no planejamento dos primeiros trabalhos de campo. 

Uma outra experiência muito gratificante e inesperada é encontrar fotos feitas no âmbito do Museu decorando as paredes e porta-retratos nas casas das parteiras. Não raro, ao visitar as casas, me deparo com aquele retrato que fiz anos atrás lá no móvel da sala, ou pendurado junto com outras imagens, algumas delas de santos ou times de futebol, espaços de valorização e respeito. 

Ao olharmos para trás, enxergando as ações do Museu da Parteira e as várias participações da fotografia nisso tudo, não podemos deixar de destacar os atos de resistência que, sozinhos, podem parecer pequenos, mas que são imensos quando vistos na trama de relações que se estabeleceram ou se fortaleceram nessa trajetória. As fotografias muitas vezes atuaram como catalisadoras ou fomentadoras de encontros. Fortaleceram trocas entre pessoas ou reforçaram a importância de estabelecermos espaços de fala dissonantes do discurso dominante. Se a fotografia traz em si a ambiguidade que é inerente à linguagem, há ali também a potência da abertura para outras possibilidades de fala e de significações.

Eduardo Queiroga
Fotógrafo
queiroga.eduardo@gmail.com


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