10/08/2023

Uma Flor do Cerrado

“Bom mesmo era se Deus abençoasse e tivesse todo mundo junto. Outra cuida do neném, outra faz o almoço, outra lava as roupa, outra arruma a casa. Ia ser bonito. E cantando e batendo palma, dançar, fazer uma roda de mulher parideira. As mulher arruma um berço de ouro pra receber um filho. Não precisa não. Tem que ser um berço de amor, do pai, da mãe e de todos que estão ali assistindo. Esse amor tem que fluir antes. Família, avô, avó, todo mundo torcendo pra essa criança vir ao mundo” (Dona Flor, 2015)

Dona Flor e Helena Tenderini (2019)

Com nome de delicadeza e beleza: Flor. Assim ficou conhecida Florentina Pereira dos Santos, a Dona Flor do Moinho, parteira e raizeira da Comunidade Quilombola Povoado do Moinho em Alto Paraíso de Goiás. De imensa sabedoria, Dona Flor se encantou, virou estrela nesse 9 de agosto de 2023, aos 85 anos de idade, ensinando até o último instante sua experiência de vida com toda poesia que trilhou pelas suas mãos: 

“Quando eu morrer, não quero choro, quero todo mundo alegre. Já vivi o que eu tinha que viver, já fiz o que eu tinha que fazer, cumpri a minha missão aqui na Terra. Na minha morte, a única coisa que eu quero é perdão e água. Porque eu gerei na água, vivi minha vida toda na água e não quero morrer de sede” (Dona Flor).

De saberes diversos, de língua poeticamente solta, sua fala fluía um dia inteiro que nem se percebia a hora passar. Fui muito bem recebida em sua casa, no ano de 2019, quando estive lá como pesquisadora do Inventário Nacional das Parteiras Tradicionais do Brasil. Sua casa é um mundo, abrigando uma diversidade de práticas, assim como diversos foram os seus saberes. Com uma lojinha de produtos naturais, fitoterápicos e alimentos nativos do cerrado, além de uma pequena sala de atendimentos. No quintal da frente, uma grande quantidade de pedras da região da Chapada dos Veadeiros: quartzos de várias cores, ametistas, guardiãs da força cerradeira. No terreiro, diversas plantas medicinais, flores, árvores frutíferas, cultivadas e cuidadas com todo amor. Na parte de trás do terreno, o forno e fogão à lenha, seu grande laboratório de fabricação de remédios naturais, além do galinheiro. Vários teares de algodão. Uma imensidade de sementes, folhas, frutas, raízes, cascas… matérias-primas para suas produções, também uma fonte de sustento.

Muito querida, Dona Flor realizou mais de 300 partos, recebeu muitos bebês pelas suas mãos, ajudou muitas centenas de mulheres a parir, adotou filhos além dos seus biológicos. Sua casa sempre foi bastante frequentada e movimentada, com afilhados, netos, mães e aprendizes a visitá-la, e pessoas para se consultar ou se aconselhar. Como a grande maioria das parteiras, ela foi uma referência para sua comunidade, uma conselheira, uma sábia que orientou as pessoas a se cuidarem fisicamente, emocionalmente, consultada sobre a educação das/os filhas/os, as relações conjugais dentre tantas outras questões relevantes para a vida.

Sabedora das plantas, raízes e ervas, Dona Flor também deixou escola, formou aprendizes, repassou seus saberes com generosidade e muito cuidado. Registrou suas experiências e lançou, em janeiro deste ano (2023), o livro ‘O Partejar e a Farmacopeia de Dona Flor – História e ensinamentos de uma mestra quilombola’ (AVA Editora, 2022), escrito por Dona Flor e organizado pela sua aprendiz Juliana Floriano.

Mulher de forte espiritualidade, deixa grande legado, muito conhecimento e amor espalhado mundo afora desde sua comunidade do Moinho, na Chapada dos Veadeiros (GO). À ela, flor em pele de gente, muito agradecimento pela sua passagem poética nesse mundo, agora volta como semente plantada na terra. Que dela, brotem muitas roseiras, girassóis e flores de seu cerrado.

(este texto contém trechos livremente adaptados do RELATÓRIO FINAL DE CAMPO GOIÁS – CENTRO-OESTE – PARTEIRAS DO CERRADO, escrito por Helena Tenderini para o Inventário Nacional das Parteiras Tradicionais do Brasil – 2020, sobre a Parteira Dona Flor)

Helena Tenderini

Mãe de 4 filhos, parteira, rezadeira, artista, educadora, antropóloga, produtora cultural e cuidadora. Tem mestrado em Antropologia e graduação em Artes Cênicas. Poeta e artista já publicou livros sobre plantas, cuidados, rezadeiras e parteiras.


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