17/05/2024

Parteiras Tradicionais: Patrimônio Cultural e Vivo do Brasil

No dia 9 de maio de 2024, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) promoveu um ato de reverência e reparação histórica às parteiras tradicionais brasileiras durante o segundo dia da 104a Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

Com o parecer elaborado pela narrativa emocionada e potente da conselheira, mulher negra e quilombola – fundadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, Givânia Maria da Silva, que evocou a figura e a memória da parteira de sua comunidade quilombola, Mãe Magá, o Conselho deliberou por unanimidade pelo reconhecimento do OFÍCIO, SABERES E PRÁTICAS DAS PARTEIRAS TRADICIONAIS enquanto Patrimônio Cultural do Brasil.

Fotografia de Marília Nepomuceno - Momento da votação favorável unânime, em favor do parecer e do reconhecimento do Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil.
Momento da votação favorável unânime, em favor do parecer e do reconhecimento do Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil. Fotografia de Marília Nepomuceno

O entendimento do ofício da parteira tradicional como elemento importante para a composição do patrimônio cultural e identidade de nosso país foi acatado pelo Conselho Consultivo, hoje ocupado por sujeitos situados no mundo através de seus corpos e suas experiências diversificadamente identitárias. O Conselho pôde fazer uma reflexão coletiva, a partir de documentos base, como o Inventário das Parteiras Tradicionais do Brasil e os Projetos de Lei que visam a Regulamentação da atividade da Parteira Tradicional, sobre a importância do Ofício da Parteira Tradicional no Brasil ao longo da história do país e a partir também da experiência de cada um dos corpos racializados presentes na ocasião da audiência.

Imagem da conselheira Givânia Maria da Silva lendo o seu parecer, printada do vídeo público de transmissão da reunião, que está
disponível no ao público on-line.
Imagem da conselheira Givânia Maria da Silva lendo o seu parecer, printada do vídeo público de transmissão da reunião, que está disponível ao público on-line.

Representando as Parteiras Tradicionais do Brasil esteve presente Maria dos Prazeres de Souza, mais conhecida como a parteira Dona Prazeres, primeira parteira tradicional titulada Patrimônio Vivo do Brasil (2018-Pernambuco), fundadora do Museu da Parteira; Vânia Maria, nora, cuidadora e fiel acompanhante de Dona Prazeres; Elaine Müller, professora do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (DAM-UFPE), responsável pela coordenação da elaboração do Inventário das Parteiras Tradicionais do Brasil, e integrante do Museu da Parteira; Júlia Morim, antropóloga responsável por iniciar há décadas pesquisas e registros junto à parteiras tradicionais no Estado de Pernambuco, diretora de cinema responsável por documentar o universo das parteiras tradicionais, integrante da equipe de coordenação do Inventário das Parteiras Tradicionais do Brasil, e integrante do Museu da Parteira; e Marília Nepomuceno, antropóloga responsável por mapear e visibilizar o universo singular das parteiras tradicionais indígenas em Pernambuco, coordenadora do programa de mapeamento e salvaguarda “Cartografia de Parteiras Indígenas”, e também integrante do Museu da Parteira.

Dona Prazeres vibra pela decisão favorável do conselho. Fotografia de Mariana Alves/IPHAN.
Dona Prazeres vibra pela decisão favorável do Conselho. Fotografia de Mariana Alves/IPHAN.

Durante a reunião, a inteligência coletiva que ocupou o auditório Heloísa Alberto Torres, no prédio sede do IPHAN em Brasília, narrava em bom som que a instituição está hoje empenhada em revelar o Brasil para ele mesmo. O entendimento que o mundo não é único, e o entendimento da necessidade de enfrentamento e combate à criminalização dos saberes populares brasileiros ganhou força e protagonismo na reunião de audiência e homologação do reconhecimento do Ofício da Parteira Tradicional no Brasil.

Além disso, foi possível ouvir que o entendimento das/os conselheiras/os presentes na audiência sobre o universo das Parteiras ganhava atenção também a partir da dimensão de gênero e entendimento coletivo sobre este ofício ser operado em larga escala dentre a potência da força e protagonismo feminino no Brasil. O horizonte destas mulheres cuidadoras é tecido através da auto-atenção produzida por mulheres cuidando de mulheres. Em meio às falas, ouvimos: “Quem não é mulher é filho de mulher. É preciso que não nos esqueçamos disso”.

Com o filme de apresentação do bem (filme de registro) do Inventário das Parteiras Tradicionais sendo exibido antes da leitura e discussão sobre o parecer, foi possível observar através da paisagem visual e sonora que suas trajetórias pessoais e coletivas são muitas vezes atravessadas por universos de precariedades materiais, e, assim mesmo, diante da lida com essa realidade, estas mulheres oferecem saúde e cuidado às suas comunidades. As parteiras tradicionais, segundo pontuou o presidente do IPHAN, Leandro Grass, vivem uma emergência permanente.

No entanto, buscando pensar para além da falta, precariedade ou escassez tão comuns às associações de seus universos, falar das Parteiras Tradicionais do Brasil é antes de qualquer coisa falar através da saúde e do cuidado que elas produzem enquanto patrimônio imaterial do Brasil. Parteiras Tradicionais produzem cuidado humano, social e comunitário. Dentro de suas comunidades as mulheres produzem auto-atenção e trocam cuidados a partir de seus pressupostos comunitários e étnicos, através do respeito, do carinho, e, sobretudo, da economia da solidariedade. O cuidado e o tratamento oferecido por estas mulheres em seus territórios de atuação são tratamentos que atravessam as dimensões físicas, emocionais e espirituais. Atendem parto por ofício, e são portanto agentes da cultura viva, da cultura permanente. Materializam o que entendemos como tradição, saber e herança. São por excelência Bibliotecas Vivas da sabedoria do cuidado popular, tradicional e ancestral.

A partir do reconhecimento do Ofício das Parteiras Tradicionais no Brasil produzimos também o reconhecimento do papel dos seres humanos no cuidado da sociedade, que está em constante transformação. Um reconhecimento como este nos ajuda a refletir coletivamente em camadas diversas, inclusive dentre a dimensão de que para produzir cuidado humano e coletivo, manter e acessar saberes e práticas populares e ancestrais têm se mostrado crucial em nosso mundo. O reconhecimento dos Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais como Patrimônio Cultural do Brasil desenvolve uma reflexão capaz de nos levar para o caminho de entendimento de que a manutenção da vida e das práticas dessas mulheres cuidadoras são estruturadoras para a sustentação das comunidades, territórios e sociedade. Essas mulheres manejam desafios e crises dentro das comunidades em que atendem partos, ajudam a manejar a vida reprodutiva de outras mulheres e famílias junto às suas expertises e compreensões de mundo, e relações com plantas, ervas e alimentos. Mobilizam a memória coletiva sobre o cuidado humano e mais que humano, mobilizam a memória alimentar, a memória sobre saúde em seus territórios, e promovem trocas simbólicas e materiais de relevância onde atuam.

O Dossiê de Registro e Inventário das Parteiras Tradicionais do Brasil, realizado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em parceria com o IPHAN, a partir do pedido feito pela sociedade civil através das Associações de Parteiras Tradicionais de Caruaru e de Jaboatão dos Guararapes (em Pernambuco), Instituto Nômades e Grupo Curumim, aponta que ao evidenciar que “Parteiras tradicionais são detentoras de um bem cultural nacionalmente reconhecido, com práticas eficazes de cuidado
comunitário, repertório religioso sincrético, conhecimento fitoterápico consistente, técnicas corporais sofisticadas e um entendimento do parto como um ritual que exige e produz uma rede com diversos agentes em interação (diferente da idéia preconizada pela filosofia ocidental) . Trata-se de uma boa oportunidade para relacionar saúde e patrimônio, e para reconhecer que o parto tem muito a falar sobre quem somos nós.”, pág. 190.

Fotografia de Marília
Nepomuceno,
momento em que
Dona Prazeres é
convidada a fazer uma
fala ao final da reunião
que reconhece seu
Ofício como
Patrimônio Cultural do
Brasil.
Dona Prazeres é convidada a fazer uma fala ao final da reunião que reconhece seu Ofício de Parteira Tradicional como Patrimônio Cultural do Brasil. Fotografia de Marília Nepomuceno.

Registrar e salvaguardar os saberes e modos de viver e fazer mundo inaugurados e mantidos há tanto tempo pelas parteiras tradicionais, oriundos de diferentes territórios e biomas brasileiros se faz urgente. A urgência de reconhecer coletivamente, e ainda em vida, apoiando, fortalecendo e pondo para circular e ser difundido os saberes e práticas das mulheres parteiras e detentoras de saber junto a técnicas de cuidado e seus repertórios de conhecimento junto a plantas, alimentos, rituais e rezas. Seus conhecimentos, ofício, saberes e práticas, são fundamentais para a preservação da cultura imaterial do Brasil.

A invisibilidade e desvalorização social enfrentadas por essas mulheres-patrimônio e bibliotecas-vivas, em grande parte além de parteiras, são raizeiras, benzedeiras e cozinheiras, matriarcas ou filhas de famílias periféricas, famílias agricultoras, famílias ribeirinhas, famílias quilombolas e famílias indígenas, é significativa. Parteiras Tradicionais costumam deter valiosos saberes e práticas sobre a cultura, as relações sociais e o meio ambiente em seus entornos, e constituem parte negligenciada da cultura brasileira há muitos anos. Reconhecê-las e fomentar seu ofício, saberes, práticas e atuações, é um ato de legitimação e fortalecimento da identidade cultural dessas mulheres e de suas comunidades de auto-atenção e cuidado. Portanto, se faz importante salientar que a necessidade de pôr em circulação este reconhecimento e produzir instrumentais de visibilização, salvaguarda e preservação do conhecimento das parteiras tradicionais, mestras e mulheres-patrimônio, bibliotecas-vivas, diante da especificidade do modo de transmissão e acesso de seus conhecimentos (oralidade); da especificidade de suas técnicas, culturas e práticas de cuidado junto a manobras, plantas, comidas e rezas; da avançada idade da maioria destas mulheres; e da necessidade de aumentar a representatividade dessas mulheres em documentos que sirvam para informar e subsidiar também elaborações de políticas públicas acerca de seus universos, de maneira geral, é latente.

O universo das parteiras tradicionais e seus saberes e fazeres dentre técnicas, manobras, plantas, ervas, comidas, rituais e rezas como promotores de saúde e cuidado comunitário, figuram em última instância também como regeneradoras de seus territórios, haja visto que para a manutenção de suas práticas movimenta-se uma reflexão em prol do manejo e preservação de plantas, ervas, alimentos, ritos e rezas. As parteiras tradicionais do Brasil são tecelãs do cuidado e da sustentação da vida comunitária, oferecem seus saberes e práticas à comunidade como uma tecnologia social desenvolvida milenarmente e não devidamente reconhecida em nossos mundos. As parteiras tradicionais do Brasil demandam salvaguarda, visibilização, e fortalecimento. Identificá-las publicamente, documentá-las, valorizá-las, promovê-las, estimular a transmissão e revitalização de seus saberes é tarefa social urgente de todas e todos nós. Considerar seus modos de vida e representações de mundo é reconhecer nossa potente diversidade cultural brasileira como definidora da identidade de nosso país.

Viva e Salve às Parteiras Tradicionais!
Para saber mais acesse o Dossiê Escrito e o Filme de Registro.

Fotografia de Socorro da Silva. Na imagem, Dona Prazeres na frente, atrás, da esquerda para a direita: Júlia Morim, Elaine Müller,
Conceição Nepomuceno, Marília Nepomuceno e Vânia Maria. Equipe Museu da Parteira em Brasília-DF.
Na imagem, Dona Prazeres na frente, atrás, da esquerda para a direita: Júlia Morim, Elaine Müller, Conceição Nepomuceno, Marília Nepomuceno e Vânia Maria. Equipe Museu da Parteira em Brasília-DF. Fotografia de Socorro da Silva.

Marília Nepomuceno Pinheiro
Mulher-cis racializada (lida como parda no Brasil), mãe de duas crianças
Antropóloga e Coordenadora do Cartografia de Parteiras Indígenas | Museu da Parteira
Nos últimos anos, tem se debruçado e colaborado em pesquisas que fazem interlocução entre a Ecologia Política, a Antropologia e a Agroecologia. Dedicando especial atenção às relações entre Territórios, Saber Popular, Memória e Patrimônio Imaterial em diálogo com a Biodiversidade Brasileira.
E-mail: smariliapinheiro@gmail.com


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